Capítulo 12 - Música


Uma nova rotina.
A frase tão importuna e assustadora pertubava minha alma cada vez em que eu caminhava de volta para casa, ou a silhueta que, pessoalmente era perfeita, prosseguia seu caminho de volta a seu lar.
Dois mundos complexos e completamente intrigantes em seu conflito eterno eram presenciados em uma transição louca, nesse pequeno período. Neste curto espaço de tempo, sair da casa de minha nova namorada e retornar à minha.
O primeiro mundo era no qual eu desejava me acostumar eternamente, sobre a dor e a nostalgia. Onde o céu acompanhava a mudança de meu humor, e que ele poderia acabar em aguaceiro, novamente junto às emoções que vinham à tona, despejando lágrimas de meus olhos. Os pingos da chuva intensa, que foram ampliadas a partir de meu choro com motivos sem sentido concreto.
O segundo mundo, o mais novo, o qual descobri recentemente era composto por ilusões, era certo. No entanto, os dois mundos eram feitos de ilusões, apenas miragens. Mas o novo sonho era tão atrativo e irresistível que era impossível haver uma escolha entre os dois, uma mínima competição. Eu sabia, na consciência ou de modo desacordado que, neste mundo, não passavam de simples acontecimentos que moveram-se como uma máscara sobre meu rosto, escondendo-me do mundo, dos fatos a minha volta.
Mas era sem possibilidades de desistir do primeiro mundo e optar pelo sensacional, como já dito.
Eu provava as novas ilusões com o sabor e a textura doce, extremamente agradáveis, sempre que avistava o corpo de minha nova amada. A principal arma, o principal remédio que compunha este mundo no qual eu gostaria de viver até o resto de meus últimos dias, era seu resplandecente sorriso. Poder aproveitar da brancura de seus dentes e do sentimento que aquele gesto carregava era um tanto... anestésico.
Um tipo de torpor que era bom, não como todos os outros que já senti.
Então, sempre que eu ultrapassava o limite que separava estes dois mundos, eu era infeliz.
Contava os minutos no círculo branco que contrastava com o preto de fundo, meu relógio de pulso. Vinte quatro horas, e eu permanecia ali, fitando sem ver o horizonte, de minuto em minuto observando o aparelho em meu pulso esquerdo.
Fora assim até hoje, durante vinte e sete dias. Mais três dias, e eu poderia gritar ao mundo, para quem tivesse tempo de ouvir: "Faz um mês que sou feliz!"
Não totalmente, mas quem se importa?
— Quero ver você tocar — dei um fim em meu devaneio, pedindo para ouvir as poucas, porém maravilhosas composições de minha melhor amiga.
Melhor amiga. Era como passei a chamar por Bruna, desde o dia do aeroporto.
— Vamos lá — sua mão agarrou a minha, puxando para o primeiro andar do castelo dos Giordano Fehera.
Ela sentou-se ao meu lado, na banqueta confortável de madeira à frente do enorme piano preto de cauda. Os dedos pressionaram-se uns aos outros, promovendo barulhos seguidos de estalos.
Um último e profundo suspiro, e a melodia alta e clara inundou a enorme sala.
Seus dedos finos e claros com a luz vinda do lado de fora dos vidros, nas paredes, passeavam com leveza sobre o marfim das teclas. Impossível seria dizer que apenas um par de mãos tocava o instrumento, ligando as notas e formando uma música linda. Primeiro, vagarosamente, semelhante à uma canção suave de ninar. Bruna acompanhava seus dedos com o prata de seus olhos, mas a expressão despreocupada, pois ela nunca erraria uma nota.
Aos poucos, a velocidade e a destreza dominaram suas pequenas mãos, articulando seus dedos, transformando-as em um único vulto. A música misturava-se a uma composição familiar, a minha preferida. E, entrelaçada ao som das teclas, a voz dela fazia uma harmonia absolutamente perfeita. O timbre emanava o ambiente, circulava sobre o apartamento vazio, as empregadas parando seus afazeres para tirar proveito daquele composto. Ambas paradas, encostadas no arco de vidro da sala de jantar.
Meu papel ali era pouco importante: eu apenas a observava, o rosto corando. Ao seu lado, eu me sentia um lixo.
A doçura então estava para terminar; Bruna havia colocado delicadeza e lentidão em suas mãos. Os últimos apertos nas teclas, e o silêncio preencheu o momento.
Logo em seguida, o barulho das palmas de dois pares de mãos ecoaram, Bruna virou-se e sorriu para suas duas empregadas. Bati minhas mãos também, sorrindo.
— Quer tentar? — seu sorriso murchou meu rosto, tirando meu fôlego.
— Não sei se...
— Ora, vamos! — suas mãos agarraram as minhas, uma cena cômica. Pequenas e aparentemente frágeis, apertaram as minhas patas de urso e posicionaram, seus dedos colados nos meus, cada mão em um conjunto de teclas. Seu rosto estava em cima de mim, os braços nos meus. Ela estava de pé, atrás de mim.
Aos poucos, ela apertava cada tecla, formando uma música simples, nada comparado às suas composições. Logo, ela criava intimidade com minhas mãos, já debruçada sobre minhas costas.
Tentei firmemente me concentrar quando a pequena elevação de seus seios roçaram o pano de sua camisa em minha nuca.
Porém, logo identifiquei a melodia.
— Argh, Bruna! — larguei as teclas e as suas mãos, apoiando minha cabeça sobre os braços, escondendo-me, enquanto ela ria freneticamente. Em um movimento rápido, senti que ela voltara a sentar do meu lado, continuando a música, torturando meus pensamentos.
— Não me lembre mais disto! — meu grito saía abafado.
Bruna articulava seus dedos na música "Parabéns a você", ainda rindo. Quando terminou, me abraçou e disse baixinho:
— Não se preocupe, por favor. Treze anos não são feitos todos os dias.
— Nenhuma idade é feita todos os dias — falei friamente.
— Quanta raiva! Fiz festas todos os anos de minha vida, por que você não quer?
— Preciso repetir? — levantei a cabeça subitamente, uma péssima idéia. Bruna estava com o rosto tão próximo ao meu, e com o impacto de meu movimento, ela rapidamente afastou-se, largando meus braços.
Tentei parecer indiferente. Ela porém, arfava um pouco. Observei seu rosto por alguns segundos, me divertindo enquanto ela pestanejava e parecia dizer algo.
— D-desculpe — gaguejou, a maçã de seu rosto bem vermelha, que estava virado para o piano.
— Pelo quê? — indiferente até demais, deixei-a até sem graça, mais do que já estava.
Ela me encarou, balançou a cabeça negativamente.
— Nada.
Levantei, fui até a janela ao fundo do piano. Bruna ria sem graça.
— Bruna — passei o dedo pelo vapor que havia na janela, criando um risco. Isso possibilitou que eu observasse os pingos do outro lado do vidro, caindo lentamente.
— Oi? — e ela ainda arfava.
— Já imaginou que, amanhã, será a Mariana a vítima do "com quem será"?
Eu indaguei tão despreocupado, ou talvez um pouco. Estava pensativo, pedi a minha mãe que não fizesse um aniversário. Como foi um pedido sem chances de ser atendido, pude imaginar minha mãe, neste exato momento, preparando a comida para amanhã.
Mas Bruna parara de arfar, quando fitei seu rosto, ele estava paralisado. A boca semiaberta, os olhos grandes.
— Desculpa! Eu não queria falar isso! — corri para seu lado, por impulso tentando lhe dar um abraço. Bruna interrompeu-me com suas mãos.
— Não, está tudo bem. E eu já tinha pensando nisto, sim — sua voz agora estava distante.
— Desculpa. Mesmo. — consegui abraçá-la e esfreguei seu braço amistosamente, como um consolo, enquanto ela me lançava um olhar doce, elevando um canto da boca volumosa.
Meu ritmo diminuiu enquanto ela me levava para minhas fantasias, onde minha imaginação comandava tudo, em meu paraíso particular. Nosso olhar se encontrou, sua boca sumiu com o pequeno sorriso. Parei de criar atrito com seu braço, consegui sentir ambos corações, palpitando em um padrão veloz e forte. Meu rosto aproximou do seu involuntariamente.
— Você está fazendo isso novamente — o hálito quente e levemente doce encostou em minha pele. Acordei do transe.
— O quê? — eu me afastei.
Mas ela não respondera de novo, apenas riu.
— Toca de novo — pedi.
Um sorriso leve aprofundou-se nos lábios de Bruna. Ela virou o corpo para o piano e recomeçou a me surpreender.
Agora, os dedos fervilhavam sobre as teclas de cor alva, incrivelmente polidas. Uma mão trabalhava no conjunto de tom grave, apertando duas ou mais teclas ao mesmo tempo, sempre alternando. A outra mão caminhava com seus dedos pela parte de som agudo, aleatoriamente. A olho nu, poderíamos dizer que era apenas passar as mãos, apertando quaisquer tecla. Ledo engano. A melodia era tão perfeita e bem composta, creio que até um gênio da música poderia intimidar-se ao ver o talento de minha melhor amiga.
Melhor amiga, que eu não tinha tanta certeza se ainda amava.
Eu sabia que algumas poucas semanas não fariam absolutamente nenhuma diferença em meu sentimento, mas com Mariana jogando, era um caso totalmente diferente. Quando eu a encontrava, Bruna era esquecida por completo, como se nunca havia existido. Bruna e qualquer outra pessoa. No entanto, em situações, antigamente rotineiras, como a de hoje, era um tanto incômodas. Bruna cutucava dolorsamente a ferida que estava prestes a se curar a cada dia. Mariana e Bruna conflitavam sem se falar, em uma espécie de briga com meu coração. A ferida que completaria treze anos daqui a quatro meses — em novembro, quando Bruna nasceu, e eu a conheci, mesmo sem poder falar — estava sendo suturada todos os dias com Mariana, mas também alargava-se com Bruna.
Foi então que eu comecei a lutar para aprender uma coisa importante. Todos os dias, em minha mente este aprendizado já era claro, quando eu estava com Mariana. Porém, ao visitar Bruna, ela transmitia uma mensagem por telepatia, de que eu não aprendera nada.
Eu gostaria de aprender que não namorava Mariana por uma causa egoísta, como tentar esquecer Bruna. Não a namorava com o propósito de amenizar a dor existente ali, que sempre era tão intensa e torturante a cada desejo meu de tocá-la de outro modo, de beijá-la até arrancar seu fôlego, de fazer dela minha namorada, de dizer "Eu te amo" da forma em que eu realmente a amo, e não como uma amizade duradoura.
Eu tentava aprender que Mariana aceitara namorar comigo para eu realmente amá-la e fazer dela a garota mais feliz do mundo. Não a usaria com fins apenas voltados para mim. Eu a faria feliz, e seria também.
Eu a amaria.
— Acorda — um estalo de sua mão sobre meus olhos me fizeram despertar. Pestanejei, logo depois lhe encarando. — Você anda muito pensativo. Vou para de tocar. — suas pernas já estava para fora, ameaçando se levantar.
— Não! — pus a mão em sua cintura, com a finalidade de impedir que ela saísse dali. Mas fora inútil.
— Vamos na varanda, vamos pensar em paz — ela puxou minhas mãos, e lançava um olhar feio em direção à sala de jantar, onde as empregadas conversavam, com uma empolgação anormal.
O símbolo estampado naquele cômodo ao ar livre, no primeiro andar do apartamento mesmo, era de conforto, e nada mais. Os móveis de vime com assentos brancos contrastavam com as almofadas de cores azuis, em tom escuro. Eram baixos e amplos. A decoração era de flores finas, e ao lado direito, uma mesa de jantar fazia parte de vários churrascos nos fins de semana. Bruna apertou um botão que ficava no beiral da cerca de concreto, e os vidros laterais fecharam-se automaticamente, deixando apenas os vidros da frente abertos. Sem largar minha mão, me fez sentar ao seu lado, enquanto agarrava uma almofada, levando-a para seu colo.
Apoiou a cabeça em meu ombro, e não pude me controlar para não contornar seu ombro com meu braço, abraçando-a confortavelmente. Observei atentamente seus olhos, que assistiam o céu desaguar, porém com um azul não tão triste. O céu não estava cinza, estava azul.
O silêncio, a não ser pela chuva densa que caía em linha reta, era pela primeira vez, bom. Uma paz indescritível tomava conta daquela varanda, e eu tinha certeza que faria eu pensar naquilo, antes de dormir.
— Pode ser que eu não demonstre isto, mas ainda me fere muito. — sua voz não ultrapassava um sussurro rouco, mas ainda sim estava calma. Tive vontade de dizer para não falar de sua dor, mas seria egoísmo. Eu também queria falar da minha dor.
— Dói... a mim, também. Você não sabe o quanto — tentei dizer, em uma voz baixa também, agoniada. Bruna virou a cabeça rapidamente para mim.
— Como... como assim?
Suspirei fundo, depois de uma última olhada no fundo líquido de seus olhos.
— Desde o dia em que te contei — minha voz era monótona e casual — sobre ela, desde aquele dia em que você desabou... se acabou em lágrimas, não consigo mais ser totalmente feliz, Bruna. — na verdade eu nunca fora — Há uma ferida em mim... não consigo consertá-la.
Silêncio. Uma pausa entrecortada por ruídos do vento se debatendo contra o vidro e do ronronar da gata Kate, que roçava-se em minha perna.
— Ela está ali para lhe ajudar, agora — sua voz era tão baixa que quase não ouvi. Uma ventania ultrapassou a frente da varanda, balançando as flores e nossos cabelos.
— Ninguém pode fazer isto, Bruna.
Seus olhos me contemplaram com dor, acima de tudo.
— Não vou parar de sofrer até ver você feliz novamente — beijei sua testa, apertando-a mais. Ela parecia uma boneca frágil e pequena em meus braços, pedindo abrigo neles.
A chuva aumentara, raios eram vistos no céu, agora mais cinza. Os pingos não paravam de cair, precipitando sem preguiça.
— Só vou parar de sofrer quando ter você novamente, só para mim — senti uma pequena poça em minha camiseta, não havia percebido que ela começava a chorar, de novo. Não bastava o quanto ela já molhara minhas roupas?
— Pare. — pedi, secando as lágrimas, que agora fluíam fortes e rapidamente. — Se não parar, irei embora.
— Não — enxugou os pingos de seu rosto com as costas da mão, fungando freneticamente. Não a abracei novamente, por medo dela iniciar uma nova sessão de choro.
— Vamos mudar de assunto. Como vai o teatro?
Bruna então, controlou suas lágrimas e começou a contar, animando-se aos poucos, sobre o curso quase profissionalizante de sua principal paixão. Contava das atividades, das peças, de tudo. Eu ouvia, atentamente, com medo de um momento como aquele ser esquecido, amanhã, ao ver minha namorada.



Eu ainda estava agradecendo pelo presente de Mariana, enquanto ouvia Bruna, do outro lado do quarto, onde eu não podia vê-la, brincando com Mike. Lílite fazia companhia para Bruna, que de vez em quanto, desviava o olhar para onde quer que Mariana e eu estivéssemos.
Eu também. Sempre que Bruna vinha perguntar algo — não trocamos palavra alguma desde a sua chegada, apenas perguntas que se diziam importantes — era rápida e logo saía de meu campo de visão. Fora, com Lílite, umas cinco vezes na cozinha para saber se Mônica necessitava de ajuda. Demoraram uma hora no máximo por lá, e logo estavam aqui.
Tinha pena. Não poderia deixar Mariana para dar atenção às duas, não poderia chamá-las para se juntar conosco. Então, tão comicamente quanto ridículo, as duas ficavam do outro lado de meu quarto, onde uma parede nos separava. Eu brincava de roubar beijos com Mariana, e as duas cansavam Mike de tanto carinho e brincadeiras. Só que elas não precisavam ficar ali, à espreita, como se estivessem espiando. Conseguiriam muito bem andar pela casa, ficar conversando com Mônica.
E, ao menos terminei de pensar isto, e as duas desceram as escadas.
Mas eu estava feliz. Era o que importava agora, afinal, eu havia conseguido algo que ansiei durante muito tempo.
— Que horas você marcou mesmo? — Mariana desordenava meu cabelo, introduzindo as mãos entre os fios úmidos. Eu me encostava em seu colo, a cabeça abaixo de seu pescoço, o mais confortável impossível. Eu trocava o canal da televisão constantemente, inquieto, insatisfeito.
Por que eu chamei Bruna para vir mais cedo?
Superficialmente, eu queria demonstrar que nada havia mudado, como prometi há algumas semanas. Com a desculpa de que nossa amizade seria a mesma. Insisti carinhosamente que ela viesse, mas avisei que Mariana estaria aqui. Ela mesma recusou a vir, mas fui tão persistente e idiota, que lá estava ela, sem coragem para encarar o casal sobre a cama. Mas estava ali.
— Daqui a uma hora.
Depois de armar um caos sobre minha cabeça, Mariana organizou os fios e os deixaram em pé com gel, como estavam antes dela bagunçar.
A última hora antes de me jogar na fogueira passou rápido demais, eu me entretia com um programa na TV, o que era raro. Entre as gargalhadas e alguns toques de lábios, os números do relógio marcaram 19h. Gritei um palavrão que arrancou as risadas de Mariana, Bruna e Lílite. Decidi conferir a aparência no espelho ao lado do guarda-roupa. Era um traje para uma saída casual, e ao mesmo tempo, para minha chamada de morte. A tortura.
O cabelo brilhante de gel, penteado levei-um-choque que eu nunca usava, uma camiseta preta estampada, calças largas brancas e um All Star simples, cinza. Não pude deixar de olhar a gaveta de acessórios, e observar uma correntinha prata, a qual Bruna me dera no aniversário passado. Este ano ela ainda não me entregara o presente, mas quando chegou aqui em casa, notei que um pacote com uma fita preta enorme estava na cozinha, e Bruna e Mônica faziam de tudo para que eu não o visse. Confesso que a curiosidade quase me corroeu, mas me mantive.
O reflexo opaco da luz na correntinha fitava meus olhos, me deixando na tentação de colocar aquele cordão de prata em meu pescoço. Refleti durante alguns segundos. Mariana com certeza perguntaria da onde era aquela peça charmosa e cheia de lembranças para mim, e eu não poderia mentir na frente de minha Bruna. No entanto, dei de ombros e passei o cordão por cima de minha cabeça, ajeitando-o no espelho.
Saí de meu guarda-roupa tecnológico — que ao mesmo tempo era um closet disfarçado, frescura que minha mãe mandou construir assim que completei quatro anos — e voltei para os braços de Mariana. Mal pude me sentir confortável, e eis que a maldita campainha soou. Corri para o andar de baixo, minha mãe já havia atendido a porta. Era Pedro.
— Tinha me esquecido de como você era pontual! — Pedro me abraçou e deu vários tapas em minhas costas, com um embrulho brilhante em mãos. Desejou-me tudo aquilo que se é dito em aniversários, com um entusiasmo inútil. Agradeci, mesmo que tivesse ouvido aquilo dele mesmo, à meia-noite de hoje, pela Internet.
— Se você não gostar... o problema é seu. — brincou ele, enquanto eu abria a caixa comprida e rasa, totalmente prateada. Um livro estava em seu interior. Mas não era qualquer livro.
— "Rise of the Ogre"! Eu não acredito! — empolguei-me rapidamente, mudando de idéia quanto à festa. Era um livro que eu queria ler havia tempo demais, e sua linguagem era apenas em inglês. Mas eu tinha conhecimento o suficiente na língua até para ler um livro.
Abracei-o novamente, pondo em evidência minha súbita alegria, tagarelando sem parar. Levei o presente para me quarto, e Pedro cumprimentava as meninas. Lílite sempre corava quando Pedro estava no mesmo ambiente, e desconfiava o porquê. Mas não tinha certeza.
Era quase claro que ela também era apaixonada por ele. Mas nem de Bruna eu conseguia arrancar esta quase óbvia resposta, então desisti de me passar por um suposto
cupido.
E como se 19h fosse um horário de trânsito humano, minha modesta casa entupiu-se facilmente. Havia gente que eu mal conhecia, e tive raiva de minha mãe. Sim, naqueles poucos minutos, Mônica transformou-se em uma mãe horrível que convidava todos os conhecidos possíveis para assistir seu filho em um inferno particular.
Mas o pior não eram os desconhecidos que mergulhavam na piscina e "acidentalmente" quebravam os copos de cristais do bar, e sim meus primos que não passavam dos oito anos, aqueles que minha mãe prometeu não convidar. Jurei que teria uma conversa séria e soturna o bastante para fingir que tinha moral com Mônica, a policial experiente.
Em torno das 20h, minha casa já chamava a atenção da vizinhança por completo. Meus tios que moravam tanto longe quanto perto estavam ali, jogando conversa sobre os mais diversos assuntos fora, em minha sala. Crianças de colo que eu tive que conhecer andavam desajeitamente apoiadas nas paredes e seguradas pelas minhas tias mais novas. Os primos que eram de minha idade flertavam vergonhosamente as meninas, incluindo Bruna. Apenas Matheus, o primo de dezesseis anos, sabia de toda minha história, minhas dificuldades de me relacionar, os fatores que influenciavam em meu inferno na Terra, tudo. E sabia também, sem precisar eu dizer palavra alguma, que todos aqueles primos traíras que paqueravam Bruna estavam quase a ponto de serem quebrados por um soco meu.
Entre um petisco e outro, eu atendia a porta, e minha casa lotava cada vez mais. Eram pessoas da escola, da família, do trabalho de Mônica. E mais presentes, incontáveis presentes. Alguns odiáveis, mas a maioria, graças ao Senhor que ouvia minhas preces regularmente, eram maravilhosos.
— E o meu presente? — não quis ser incoveniente, mas Bruna nunca deixou de me entregar algo que eu deseja muito, e sempre me surpreendia. E era a primeira a entregar, de todos.
— Calma! Não se preocupe, você terá o seu presente. — e ela caminhava de volta para a roda de garotas que ficava no canto de meu quarto, cochichando e olhando feio para mim.
Apesar da aglomeração nos três andares da casa, conforme os minutos passavam eu me sentia cada vez mais entediado, ou mais provável, triste. Mais um pouco e tinha certeza de que estava decepcionado. Bruna me garantira o presente, mas parecia que ela não me daria nada. Quando havia tempo, entre uma rápida conversa com um parente e outra, eu ia ao banheiro de meu quarto e me encarava no espelho. Também andava para o terraço de meu quarto, que havia trancado por precaução das crianças menores. Sempre pensativo.
E, como eu não esperava, a famosa hora do bolo não foi tão ruim. Fora um horror, fora totalmente indescritível e torturador. Todos os convidados amontoaram-se em minha sala de jantar, e quem não conseguia passar pelo arco da porta que agora aparentava minúsculo, ficava de espreita na sala de estar. O bolo, enorme e até que apresentável, por ser feito em última hora. Três camadas separadas por um pequeno pilar de metal, cada andar em uma bandeja de prata. Era inteiramente coberto por tufos de chantili. Digno de um casamento. E ali, observando as chamas das velas que indicavam "13", eu batia palma junto ao coro que gritava freneticamente a música do "Parabéns a você", em vez de cantarem.
Desta vez, como eu esperava, e graças às fofocas de meu namoro que foram espalhadas antes mesmo de eu descer de meu quarto para cortar o bolo, a idiota música do "Com quem será" foi exatamente com quem eu pensava. Mariana.
Quando cantaram o seu nome, ela caminhou empolgadíssima até o meu lado, atropelando quem estava em seu caminho, ou seja, Bruna. Ela não estava ao meu lado enquanto os flashes eram batidos em minha cara, enquanto as faíscas das velas queimavam o bolo. Ao meu lado não estava ninguém que eu desejava, como meus amigos. Estavam meus primos demoníacos e hiperativos, que enfiavam os dedos safados para dentro do bolo, crentes que ninguém fosse vê-los. E sim, não estava ninguém que eu desejasse mesmo, com Mariana incluso. Ela selou meus lábios, provocando gritos de felicidade e aclamação de todos ali presentes, menos o de Bruna.
Durante toda a tortura eu sempre contemplava o par de olhos mais lindo do universo, para avaliar a sua reação, ou até mesmo como um impulso, uma forma de dizer "Tire-me desse inferno, melhor amiga!". Ela respondia com um sorriso amarelo ou até mesmo gesticulava palavras acolhedoras, mas na hora da música temida, ela simplesmente fugira do ambiente.
Esperei toda aquela cerimônia de apagar as velas e inclusive fazer um breve discurso — no qual me saí muito bem, até um pouco divertido — passar para procurar minha melhor amiga, que não ficou todo o período para me acomodar, me acalmar diante daquelas pessoas. Vasculhei a casa inteira enquanto os outros entravam novamente na piscina ou comiam pedaços do bolo, mas ela não estava em lugar algum.
Resolvi procurar em meu quarto, mas não havia nada ali, a não ser o som ligado em alto volume, vibrando ao passar uma música eletrônica. Até entrei em meu guarda-roupa, mas nada havia ali.
Foi quando caminhei em frente à porta trancada e opaca de minha varanda. Olhei para a porta de meu quarto para certificar de que nenhum pentelho a atravessaria, e fui para a varanda.
Quem eu procurava estava ali, sentada com as pernas cobertas apenas por um shorts curto para fora da varanda, penduradas no ar. Estava sentada em cima da cerca que separava o chão seguro da altura perigosa de três andares. Podia ver um vulto entre a cerca de suas pernas balançando regularmente, mas a cabeça estava baixa, emitindo várias fungadas. Esperei alguns segundos, aproveitando enquanto ela não notava minha presença, e me aproximei.
Notei que vários lenços de papéis estavam ao seu lado, todos amassados.
— Você não está pensando em se matar, está? — perguntei em uma voz surpreendentemente feliz, e não acreditei que fosse pela festa. Era mais coerente que fosse porque eu havia achado Bruna.
Ela interrompeu uma crise de choro que estava começando, e virou a cabeça imediatamente para mim. Dei um sorriso amarelo, mas depois que notei que haviam lágrimas saindo de seus olhos, aproximei-me dela o mais perto possível.
"De novo não", pensei.
— O que foi? O que aconteceu?
Não pude deixar de terminar de falar e ela apoiou a cabeça nas próprias mãos, tendo mais uma crise sensível. Abracei-a como em todos os momentos que ela chorou, mas nada adiantara. Ela chorava ruidosamente, enquanto eu esperava ela conseguir falar. Foi entre a inconformidade de algo que eu não sabia o que era e fungadas assustadoras que ela conseguiu me explicar:
— Não sabia que substituir meu nome pelo dela no "Com quem será" iria doer tanto — quando terminou a frase, jorros de água rolaram pela face desesperadamente.
Achei que teria dó, mas tive vontade de lhe dar um tapa.
— Você está chorando por causa disso? — minha voz saiu áspera, no entanto esperei não magoá-la ainda mais.
— E-estou — larguei meus braços que abraçavam involuntariamente seu corpo, me afastando. Entendi que reconfortá-la seria pior para parar de chorar. Fitei as estrelas que cobriam o céu de um modo esparramado, tendo pela primeira vez, paz naquela noite. O silêncio preenchido pelas lágrimas barulhentas de Bruna deixavam a noite mais triste, arrancando de mim o empolgamento inacreditável pela festa. De vez em quanto, eu olhava pelo canto do olho para ver como estaria Bruna, e ela não saiu de sua posição de choro: a cabeça apoiada nas mãos. Caminhei pela varanda, esperando pelo momento certo. Tranquei a porta para certificar que ninguém nos interromperia.
Bruna então, depois de enxarcar seu oitavo embrulho de papel, silenciou o choro, deixando-o apenas em algumas lágrimas que escapavam uma vez ou outra. Passei a mão sobre suas costas, agora podendo fazer aquilo sem receio. Aos poucos, ela cedia, deixando que o silêncio dominasse o ambiente, e a dor passasse.
— Acho que Mariana precisa ir embora. São 23h agora. — sussurrei com doçura enquanto olhava o relógio e a porta. Ela assentiu, e voltei para a festa.
Procurei minha namorada, e não demorei a achá-la. Perguntou onde eu estava, e rapidamente inventei uma desculpa de que estava no telefone. Ela, como esperei, disse que sua irmã mais velha estava esperando-a na porta de casa. Beijei-a demoradamente, agradecendo sua presença e o presente que me dera. Acompanhei-a até a porta.
Quando voltei para meu quarto, vi que a porta do banheiro estava aberta e a luz acesa. Aproximei-me e vi Bruna ajeitando o cabelo, o rosto molhado. Seus olhos estavam um pouco ruborizados, vários pontos em sua face também. Depois de se enxugar, apagou a luz.
— Ela já foi — falei, em tom de acaso. Ela obviamente estava melhor.
— Ainda tem muita gente lá em baixo?
— Sim — lamentei.
— Droga! — seus olhos percorreram o chão, mas logo voltaram para os meus. — Minha cara está muito feia?
— ... não?! — Era impossível ser feia. Bruna era linda sempre.
— Estou apresentável? — insistiu, agora impaciente.
— Sim, está — sorri rapidamente, e ela disparou porta afora. Disse para eu não segui-la.
Voltei para o terraço, sentando no mesmo local que estava Bruna. Observei distraído o céu quase negro totalmente limpo, sem muito no que refletir sozinho. A calmaria invadia meu espírito novamente, devolvendo-me a preguiça, a paz. Estava com as pernas se agitando sobre o nada, pendurado na cerca, correndo risco de vida. Fitei o chão da calçada, que refletia a luz azulada do primeiro andar de casa. Ainda pude ouvir vozes entrelaçadas, unindo-se em um zunido só. Tinha a certeza de que todos aqueles que me parabenizaram estariam ali, aproveitando tudo o que minha paciente mãe e minha casa, que agora parecia um cubículo, tinham a oferecer de interessante. Também estava começando a me conformar de que eles começariam a deixar a casa assim que o dia seguinte chegasse, ou seja, daqui uma hora.
O clima estava seco; como eu não gostava, exatamente. Senti um pouco da claustrofobia invadindo meu corpo, mas respirei fundo e acalmei, quando o vento começou a assoprar as folhas dos carvalhos e os meus fios de cabelo.
Ouvi o barulho da porta abrindo-se, e de um modo provavelmente paranormal, eu sabia que era Bruna. Não virei para olhá-la, brincando comigo mesmo, testando minha habilidade em diferenciar presenças. Dei uma risada grave e sem graça.
— É tão... estranho. — arrisquei, ainda sem olhar para a pessoa que estava ali.
— O quê? — dei outra risada idêntica quando reconheci a voz doce e inacreditavelmente bonita. Ela pareceu não entender, mas me ignorou. — Cale a boca! — brincou — Venha aqui, o risco é menor de seu presente cair no chão e se quebrar em alguns pedaços.
Saí de meu assento novo — o qual, apesar da casa ser minha, nunca ter sentado ali, por ter vários outros lugares normais para se sentar, ou talvez por ter um mínimo senso de autoproteção.
Deparei-me com uma enorme — talvez medisse metade de minha estatura — caixa de presente no chão, comprida e gorda. Aparentava bem maior do que aquele pedaço que eu havia visto pela manhã, no balcão de minha cozinha. Era totalmente branca, envolvida por uma fita que vinha dos quatro lados, preta e de cetim. Era reluzente com a luz vinda da parede, mas, movido pela curiosidade, puxei a fita sem cerimônia.
Quando removi a tampa, meus olhos arregalaram-se e senti que minha boca se abrira. Bruna dava alguns risos disfarçados, esperando minha reação por completa. Uma capa preta e sinuosa residia o interior da caixa. Retirei o objeto um pouco pesado, abri o zíper.
— Um violão! Como... como você...
— Achei a sua cara — interrompeu-me — Não achei presente que mais combinasse com você. E eu mesma afinei.
— Adorei! — falei com sinceridade enquanto avaliava o instrumento preto com as bordas brancas. Suas tarraxas eram douradas e cintilavam quando encontravam a luz. Deixei o violão em cima da capa com cuidado, enquanto levantava-me para abraçar Bruna. — Obrigado mesmo! Adorei de verdade! — dei entusiasmo às palavras e ao meu gesto, levantando-a do chão com meu aperto forte. Ela apenas respondia com sorrisos demorados, que habitualmente derretiam meu coração.
— Eu sei que você não sabe tocar muito... mas eu também posso te ensinar agora — gracejou, e fazia expressões engraçadas, elevando as sobrancelhas. Apanhei o instrumento e passei os dedos sobre as cordas, maravilhado pelo som uniforme e agradável que saíra. Arrisquei uma pequena música e insignificante perto daquelas que Bruna dedilhava humilhantemente, e o som a transformou em um uma esplêndida melodia.
— Até que você não toca tão mal. — e deu mais um riso, para a coleção. Sorri gentilmente, agradecendo com os olhos mais uma vez pelo presente perfeito. Toquei novamente a mesma canção, encantado com o som que o aparelho produzia.
— Posso? — pediu ela, a voz simpática, quando terminei a infame música. Hesitei, sabendo que teria que me rebaixar diante dos cantos que ela produzia em seu violão. Imaginei como seria demonstrar novamente sua habilidade musical no novo instrumento, que faziam de minha pobre melodia uma canção apresentável e até que bonita.
Então, ela começou.
Os dedos finos e pálidos, assim como no dia anterior, trabalhavam alternavam de posição sobre o braço do violão, pressionando as cordas certas, enquanto a outra mão dedilhava uma corda por vez, unindo as notas que não faziam sentido para mim, em uma única música, uma única sensação. Era tão maravilhoso quando assustador. Não acreditei que provocaria uma emoção tão diferente quanto reconfortante, era quase tão boa como aquele torpor que eu sentia quando estava na presença de Mariana. O som acústico ajudava a trazer a calma e a harmonia de volta ao meu espírito, o toque de sua unha ligeiramente comprida e aparada em linha reta contra a corda emitia, a cada vez mais, a vibração artística de uma profissional de apenas doze anos, que transmitia ondas de felicidade e conforto através da melodia.
E, para meu paraíso estar completo, enquanto eu me deitava no chão para observar o céu e seu rosto concentrado na música perfeita, sua voz saiu em um contraposto de meu dia, o dia que apresentou-se um inferno, até aquele momento.
"No one knows what it's like
to be the bad man
to be the sad man
behind blue eyes
and no one knows
what it's like to be hated
to be faded to telling only lies
but my dreams they aren't as empty
as my conscious seems to be
I have hours, only lonely
my love is vengeance
that's never free"

(Limp Bizkit - Behind Blue Eyes)





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