Capítulo 11 - Conforto


Vários pingos adornavam o vidro embaçado do lado de fora, com um pequeno círculo transparente sobre meu nariz e minha boca. Do outro lado de onde eu refletia sem conseguir parar, a chuva caía sem dó, aclamando pelo verão que estava apenas em seu início. O barulho quase silencioso dos pára-brisas era nauseante, o rádio ligado não estava ajudando em minha distração. Minha respiração era irregular, eu baforava a janela enquando relembrava de minha noite anterior, onde eu velava o sono de Bruna, por volta das três horas da manhã. Seu descanço era mais doce do que seu próprio aroma, era leve, vivo e divertido. Quase poder assistir seus sonhos era mais prazeroso do que ver um programa de televisão preferido, um filme que goste ou um jogo de futebol para quem é fanático. Sua pele ficava quente ao adormecer, eu podia enlevar-me de seu repouso tão perfeito, acariciando a maçã de seu rosto, beijando as costas de sua mão, e ela ao menos se incomodar com isto. Sussurrava palavras, aparentemente românticas, mas no fundo apenas amistosas e sinceras em seu ouvido, tentando fazer com que ela sonhasse com aquilo.
"Isso não vai mudar nada entre nós."
"Promete?"
"Prometo."
A pequena passagem que ocorreu segundos antes de nosso primeiro beijo caminhou pela minha mente em forma de uma pequena indigestão, perfurando a boca de meu estômago.
— Estou enjoado — sussurrei contra o vento levemente frio do ar condicionado, que também não colaborava com meu enjôo.
— Não posso parar o carro agora, está chovendo — disse minha mãe, com uma leve impaciência na voz.
Mônica detestava Mariana. Mônica detestava Mariana e todo o resto de sua família, que já dera problemas demais à delegacia. Ela estava me levando ao aeroporto para recebê-la de volta... e não era bem isto que ela queria. Discutiu comigo sobre querer pedi-la tão cedo em namoro, e ficou inconformada com a expressão de dor de Bruna quando foi deixá-la em casa. Ficou indignada de tal forma que parecia que Bruna era sua própria filha.
Mônica Medeiros. Tão bipolar.
Abri o porta-luvas, procurando algum tablete de bala. Achei uma, mas olhar o sabor, pude sentir que quase vomitaria. Joguei o tablete de volta ao seu lugar, fechando o porta-luvas.
Respirei fundo três vezes, e isto ajudou um pouco. Já havia lidado com e enjôo de carro, e não eram poucas vezes.
Mas tinha certeza que não era o movimento do carro e a claustrofobia corrente que eram os motivos do enjôo, e sim a viagem em si.
Agora, mais do que qualquer outro momento, era deprimente estar indo em busca de minha futura namorada que, verdadeiramente, não gosto. Porém, não estava indo em sua busca, e sim procurando paz para minha dor que durara mais que doze anos.
E daqui a algumas semanas, treze anos.
Mônica, por outro lado da momentânea depressão, estava preparando minha próxima festa de aniversário. Pedi a ela quase todo dia que desistisse da idéia, afinal era horrível me imaginar de novo, na frente de uma mesa decorada sutilmente, com os primos pequenos à minha volta, e os melhores amigos distantes de mim. No entanto, ela concordou em convidar os primos mais velhos e meus amigos. Só.
Então, o problema não seria a repetitiva festa, mas a vítima do famoso canto "com quem será". Não há mais graça, ainda mais se for com uma pessoa diferente de Bruna, que já era perita em participar de tal brincadeira ridícula. Principalmente, se a brincadeira fosse comigo.
Agora, então, eu teria que apresentar Mariana como minha nova e primeira namorada e selar seus lábios na frente de todos, e não beijar a bochecha de Bruna quando a brincadeira fosse terminada.
Apesar da controvérsia, o devaneio diminuiu um pouco minha náusea. Estávamos perto do aeroporto, e Mônica estava ficando cada vez mais mal-humorada.
Eu porém, estava cada vez mais aflito, inquieto. O café-da-manhã digerido agora queria voltar para fora, insatisfeito com o que encontrou em meu estômago.
Ou seja, borboletas.
— Vai mesmo conseguir ser simpática com eles? — falei agora um pouco mais alto, mas ainda com ânsia. Mônica concordara, antes de sair, que iria me fazer companhia, até levá-los para casa, onde eu iria ficar à sós com Mariana.
— Posso não ser das melhores mães, mas acho que sou boa atriz — e deu uma risada baixa, o rosto empinado.
Assenti.
Ela estacionou o Audi com cuidado e destreza, abrindo o guarda-chuva marrom.
Um silêncio preenchido apenas pelo barulho dos aviões e pela chuva que molhava a barra de minha calça era irritante.
Do silêncio, porém, Mônica se perguntava porque seu filho era tão mau. Isso era um fato, eu podia sentir.
— Não te criei deste jeito, Guilherme. O que fez você deixar Bruna com uma cara tão feia hoje de manhã? — sua voz era cortada por alguns raios que caíam longe dali.
— Acho que não é questão de como fui criado... e sim de como pensei pra chegar nisso.
— E como você chegou nisso? — o aeroporto, agora estávamos em seu interior, era um tanto quente e convidativo. Minha náusea passara, mas ainda eu insistia em ficar nervoso. Era tão grande quanto iluminado, onde passamos por mais uma barreira de portões de vidro automático, e as lojas anunciavam produtos caros e precisos. Lanchonetes, lojas de roupas, etc.
— Cansei. Simplesmente cansei de ficar correndo atrás de Bruna — minha segurança foi tanta na frase, que não acreditei que estava nervoso.
— Vou fingir que acreditei.
Caminhamos em direção ao segundo andar, onde provavelmente Mariana apareceria. Certifiquei, pela quinta vez, de que o porta-anel estava em meu bolso, e que a coragem estava dentro de mim.
Ambos conferidos.
No elevador, era possível ter a visão dos vários aviões que decolavam, um barulho abafado pelo vidro. Uma música suave e instrumental soava pelo ambiente, parecia que tentava me tranqüilizar. Tentativa tão falível quanto a música do carro de minha mãe.
Realmente poderiam ter desistido de continuar os vôos naquele dia; justo aquele dia tão chuvoso.
Mas era algo lógico: chovia bem no dia em que eu iria fazer a coisa mais corajosa de minha vida.
— Ainda está enjoado? Posso comprar alguma coisa.
— Não, passou. — tirei a jaqueta cinza e a segurei em meu ombro.
— São 9:36h. Ainda temos algum tempo — Mônica agora parecia bem-humorada. Era como uma criança, gostava de luzes, ou como uma adolescente, gostava de lojas. Caminhamos pelos comércios, ela comprou uma calça para si mesma. Nada ali chamava minha atenção, meu guarda-roupa fora completado mês passado.
Fomos procurar a sala de desembarque número 2. Lá sairiam os vôos nacionais, e sentamos nos bancos confortáveis à sua frente.
O mais cômico era o modo de como eu ficava impaciente com espera. Nunca consegui, de fato, esperar verdadeiramente por algo, com exceção para uma coisa que vocês já estão cansados de saber. Por ela, eu esperaria a vida inteira.
Nunca conseguia esperar por algo, se fosse quieto, sentado, calmo. Sentado naquele banco, um porta-anel que mantia em segredo duas alianças que mudaria a vida de três pessoas, uma mãe que mais parecia uma amiga da mesma idade, balançando os cabelos curtos constantemente, eu batia o pé num ritmo irritante. Roía as unhas constantemente, desenredando as questões curiosas que apareciam no grande telão preto às minhas costas. Ia ao bebedouro, brincando com a água gelada demais para o tempo lá fora, bebendo litros até minha bexiga implorar pelo mictório. Incrivelmente, quando voltava, minha mãe estava ali, imóvel, com a paciência que a profissão e a experiência lhe oferecera, em porções generosas. Ela fitava ora fitava o vazio, ora me olhava por inteiro, ora mexia em seu celular multifuncional.
Então os números grandes do telão marcaram 10h. O aeroporto de Verone City não era famoso por atrasar vôos. Então, o vôo 1943 chegaria exatamente nesse horário.
Comecei a suar frio — era muito ruim. Não podia abanar-me porque estava frio, mas transpirava. O conjunto de borboletas voava novamente, em vôo alegre em meu estômago, e tive que tomar mais água para ver se acalmava elas. 10:01h.
Uma senhora de cabelos alvos e baixinha saiu com uma pequena mala de rodinhas. Logo depois, uma jovem alta, uma mulher, uma criança ativa e, finalmente, uma garota de longos cabelos lisos.
— Mariana! — meu grito extremamente alto foi involuntário, algumas pessoas se deram o trabalho de me encarar.
Não liguei.
Levantei-me imediatamente da cadeira, ela procurou de onde saíra a voz. Acenei alto, e ela estampou um sorriso enorme ao me reconhecer.
Abandonou sua mala, correndo de braços abertos.
— Que bom te ver! — estendendo as vogais da frase, pulou em meu colo, afundando o rosto em meu ombro. Ignorei tudo à minha volta, não importava mais nada.
Meu refúgio estava ali, novamente me levando às nuvens. Eu conseguia sentir o torpor, a sensação de conforto me agarrando para livrar-me de todo mal, de tudo o que eu quisesse realmente afastar de mim.
Ou talvez não.
— Senti saudades — minha voz misturou-se em seus fios lisos artificialmente, porém brilhantes. Não era capaz de dizer se poderia ser verdade ou mentira, mas... era como se me forçassem.
— Quase morri de saudades. — E me beijou duas vezes, selando meus lábios. Os olhos de esmeraldas transmitiam doçura, o que eu realmente precisava para me acalmar.
Quando seu corpo foi para o chão, segurei forte em sua mão, cumprimentando o resto de sua família problemática. Era indignante, todos pareciam família da antiga Mariana. A miopia era hereditária, o cabelo ondulado e preto era visto em cada um deles. Mariana era a mais nova intrusa, a adotada.
— Vamos para casa, agora. Quero contar tudo para você. — despedi-me de minha mãe, e ela desapareceu pelas portas de vidro do aeroporto. Parara de chover, então caminhei ao lado de Mariana até chamar um táxi, sempre brincando com o dedo no bolso, sobre o porta-anel.




— Mas eu ia te ligar! - menti descaradamente, enquanto entrávamos em sua casa modesta, eu pela primeira vez.
A entrada era, primeiramente, a sala de jantar, com uma porta diretamente para a cozinha. Ao lado direito, íamos para uma área com uma enorme estante entupida de incontáveis livros, uma escrivaninha e um belo quadro. Por trás da estante, havia uma parede com uma TV e um sofá. O irmão mais novo de Mariana jogara-se no sofá, ligando o video-game.
Subimos as escadas, e notei que a decoração feminina — obviamente propício, afinal a casa era governada por mulheres — emanava tudo. Desde os quadros às estatuetas modernas. Eram, ao todo, sete cômodos no andar superior. No térreo, apenas quatro o compunham.
Mariana, assim que entrou em seu quarto, ligou o aparelho de som e despejou-se na cama, coberta por uma colcha fina, estampada por círculos e flores, variantes de branco ao verde-limão.
Todas as paredes eram brancas; o teto era verde escuro. Ela sempre disse que quando ficava confusa, a cor a ajudava a organizar os pensamentos.
Era uma cor viva, ativa, prática. Do tapele felpudo ao lustre moderno, o verde estava presente. Sempre em tons alternados, mas estava ali.
Me senti em uma floresta.
Sentei ao seu lado, acariciando seus fios finos e amarelados.
— Damien Rice — falei, em tom indiferente, reconhecendo a música e quem a cantava.
Um sorriso deu vida ao rosto dela, e conseqüentemente ao meu também. Eu sabia que tinha deixado a tristeza para trás, era inevitável.
— Quer fazer o quê? — levantou-se, encostando na cabeceira da cama pequena. — Ah! Tenho uma surpresa para você. — e saltou para fora da cama, buscando na mala pesada, do outro lado do quarto.
— Também tenho uma surpresa... — olhei casualmente o chão, sempre cutucando a caixinha em meu bolso esquerdo. Ela não pareceu alterada, continuou procurando.
Achou um pequeno embrulho prateado, em formato irregular. Ela o segurava de modo que parecia macio.
Veio até mim novamente, sentou ao meu lado.
— Para você. — e entregou o pacote para mim.
Fiz uma cara de espanto. Sorri involuntariamente.
— Obrigado — e abri com cuidado.
Retirei um urso de pelúcia peludo e macio. Seu pêlo era bege, quente como um cobertor. Em sua pata esquerda, estava escrito "Me to You".
— Adorei — era verdade. Um apetrecho tão romântico não era má idéia. Selei seus lábios, outra vez, involuntariamente. Puro impulso.
— Ah, também tem isso — um porta-retrato preto, com várias fotos nossas nas laterais. No centro, a foto bem maior, e eu a abraçava por trás, beijando sua bochecha.
Uma memória ousou interromper o momento, levando consigo meu sorriso.
Era tão semelhante à foto minha com Bruna. Ao meu retrato com ela, que sempre ficou ao meu lado quando eu adormecia.
Uma pontada forçou minha mão ir até meu peito para segurá-lo.
A partir de hoje, o retrato que ficaria em meu criado-mudo era aquele.
— Que lindo. — foi o que minha voz conseguiu pronunciar.
— Olha o meu — e ela apontou o dedo para sua cabeceira, onde havia um porta-retrato idêntico, porém de cor roxa.
Forcei um riso baixo. Contemplei nossa foto, o que aquilo significaria para mim. O que mudaria em minha vida, em nossas vidas.
A vida de três pessoas. Minha, de Mariana, e de Bruna.
Ela observava meu rosto, parecia que estava tentando decifrar meus pensamentos. Mantive a cara sóbria, tentei dar um sorriso. Falhou.
— Agora, minha surpresa — estava determinado agora. É claro que não desistiria tão fácil, por causa de uma simples imagem.
— Ah, sim. É verdade. O que é? — tive dó de Mariana. Tão despreocupada e cansada da viagem. O tom distraído não significava que ela estaria pronta.
Mas nada me impediria.
Peguei sua mão direita, coloquei em minha perna, ainda segurando. Enfiei a outra mão no bolso, apertando a caixa.
— Sabe — comecei, fitando suas pernas cobertas por uma calça cinza. — Eu tomei a liberdade de fazer uma coisa enquanto você estava fora.
Era tão inútil aquela conversa. Era perceptível, fitando seus olhos, que o brilho já estava muito visível.
— Pensei bastante, e comprei isto. — agarrei a caixinha, coloquei entre nós. Abri.
Sua boca se abriu, os cantos dela se elevaram. Ela me encarou com as esmeraldas brilhantes.
— Quer namorar comigo? — um choque leve correu por meu corpo, tentando fazê-lo tremer. Eu não sabia o impacto daquela frase, era tolamente frio.
Esperei o abalo a emoção que, sem desejar, fez meu sorriso manifestar-se novamente, acabar. Impossível, afinal aquilo poderia ser seu maior sonho. Ela pegou os anéis, observou-os.
— Claro que quero! — exclamou como se fosse óbvio até para uma criança.
Seu sorriso me esquentou, e aos poucos coloquei o anel em seu dedo anelar. E ela colocou o outro anel em meu dedo.
Mas ela ainda estava admirada.
— O que foi? — perguntei apenas para descontrair. A resposta era clara.
— Eu não acredito! Foi tão... de repente! Foi tudo o que eu sempre quis! — ela gesticulava comicamente as mãos, abrindo e fechando-as. — Mas eu nunca imaginei que seria... que seria hoje!
— Quer que eu peça outro dia? — brinquei, o rosto sério.
Ela riu, jogando a cabeça para trás. Puxou-me pelo braço, fazendo-me ficar por cima de si, deitada. Beijei sua boca minuciosamente, experimentando, agora calmamente, a textura de seus lábios. Ela deixava, pacientemente, eu executar meu teste. Repuxei seu lábio inferior levemente, fechando meus olhos.
Então nos beijamos enquanto começava a chover novamente. Os ruídos do cair das gotas em cima do telhado, nas folhas das árvores, na rua, era embalante. Eu estava em meu lar, no meu refúgio. No novo conforto que passaria a me curar todos os dias, ou a cada vez que nós nos víssemos.
Dedilhava os fios finos e frágeis de Mariana, estávamos sentados de frente para o outro, os lábios colados. Nossas línguas enroladas em uma só, seus dedos finos andando por meu rosto.
Não era, nem nunca seria o protótipo do paraíso que eu gostaria de possuir, mas era um tipo desconhecido. E bom.
— Você às vezes não parece ter doze anos. — disse em voz baixa e quente, os olhos esverdeados calorosos.
— Nem você aparenta quatorze. Mas por que não pareço ter doze? — uma pergunta inútil, até eu mesmo reconhecia não ter a idade que tinha. A aparência, os pensamentos. A modéstia também.
— Preciso dizer? — até ela.
— É bom ouvir novamente — sorri.
— Uma criança de doze anos nunca me encantou tanto.
— Ora, criança! — elevei minha voz uma oitava, rindo um pouco. — Então você não se importa em namorar uma criança?
— A verdade? Não.
Elevou os cantos da boca, mostrando os dentes brancos. Incentivou-me a beijá-la novamente. Incrivelmente já acostumara com os beijos, tão facilmente que impressionava até a mim mesmo. O tecido era familiar, um tipo diferente, mas reconhecido. Até mesmo no dia em que eles se encontraram pela primeira vez, o sabor era doce.
Doce como a infância, como o abraço de uma amiga, as palavras ressussitadoras de minha mãe.
Uma velha amiga...
— Agora você pode dizer que me ama? — o cuidado especial nas palavras, querendo não ser incoveniente. Grudei minha testa à sua, já estávamos enrolados em sua colcha fina, a cama desorganizada.
— Claro. Te amo — não podia ser perfeito. Era humanamente impossível. Ela não poderia ser tão perfeita, nunca fora. Mas por que eu me sentia tão bem?
Não havia o porque agora. Não mais.




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