Capítulo 12 - Música


Uma nova rotina.
A frase tão importuna e assustadora pertubava minha alma cada vez em que eu caminhava de volta para casa, ou a silhueta que, pessoalmente era perfeita, prosseguia seu caminho de volta a seu lar.
Dois mundos complexos e completamente intrigantes em seu conflito eterno eram presenciados em uma transição louca, nesse pequeno período. Neste curto espaço de tempo, sair da casa de minha nova namorada e retornar à minha.
O primeiro mundo era no qual eu desejava me acostumar eternamente, sobre a dor e a nostalgia. Onde o céu acompanhava a mudança de meu humor, e que ele poderia acabar em aguaceiro, novamente junto às emoções que vinham à tona, despejando lágrimas de meus olhos. Os pingos da chuva intensa, que foram ampliadas a partir de meu choro com motivos sem sentido concreto.
O segundo mundo, o mais novo, o qual descobri recentemente era composto por ilusões, era certo. No entanto, os dois mundos eram feitos de ilusões, apenas miragens. Mas o novo sonho era tão atrativo e irresistível que era impossível haver uma escolha entre os dois, uma mínima competição. Eu sabia, na consciência ou de modo desacordado que, neste mundo, não passavam de simples acontecimentos que moveram-se como uma máscara sobre meu rosto, escondendo-me do mundo, dos fatos a minha volta.
Mas era sem possibilidades de desistir do primeiro mundo e optar pelo sensacional, como já dito.
Eu provava as novas ilusões com o sabor e a textura doce, extremamente agradáveis, sempre que avistava o corpo de minha nova amada. A principal arma, o principal remédio que compunha este mundo no qual eu gostaria de viver até o resto de meus últimos dias, era seu resplandecente sorriso. Poder aproveitar da brancura de seus dentes e do sentimento que aquele gesto carregava era um tanto... anestésico.
Um tipo de torpor que era bom, não como todos os outros que já senti.
Então, sempre que eu ultrapassava o limite que separava estes dois mundos, eu era infeliz.
Contava os minutos no círculo branco que contrastava com o preto de fundo, meu relógio de pulso. Vinte quatro horas, e eu permanecia ali, fitando sem ver o horizonte, de minuto em minuto observando o aparelho em meu pulso esquerdo.
Fora assim até hoje, durante vinte e sete dias. Mais três dias, e eu poderia gritar ao mundo, para quem tivesse tempo de ouvir: "Faz um mês que sou feliz!"
Não totalmente, mas quem se importa?
— Quero ver você tocar — dei um fim em meu devaneio, pedindo para ouvir as poucas, porém maravilhosas composições de minha melhor amiga.
Melhor amiga. Era como passei a chamar por Bruna, desde o dia do aeroporto.
— Vamos lá — sua mão agarrou a minha, puxando para o primeiro andar do castelo dos Giordano Fehera.
Ela sentou-se ao meu lado, na banqueta confortável de madeira à frente do enorme piano preto de cauda. Os dedos pressionaram-se uns aos outros, promovendo barulhos seguidos de estalos.
Um último e profundo suspiro, e a melodia alta e clara inundou a enorme sala.
Seus dedos finos e claros com a luz vinda do lado de fora dos vidros, nas paredes, passeavam com leveza sobre o marfim das teclas. Impossível seria dizer que apenas um par de mãos tocava o instrumento, ligando as notas e formando uma música linda. Primeiro, vagarosamente, semelhante à uma canção suave de ninar. Bruna acompanhava seus dedos com o prata de seus olhos, mas a expressão despreocupada, pois ela nunca erraria uma nota.
Aos poucos, a velocidade e a destreza dominaram suas pequenas mãos, articulando seus dedos, transformando-as em um único vulto. A música misturava-se a uma composição familiar, a minha preferida. E, entrelaçada ao som das teclas, a voz dela fazia uma harmonia absolutamente perfeita. O timbre emanava o ambiente, circulava sobre o apartamento vazio, as empregadas parando seus afazeres para tirar proveito daquele composto. Ambas paradas, encostadas no arco de vidro da sala de jantar.
Meu papel ali era pouco importante: eu apenas a observava, o rosto corando. Ao seu lado, eu me sentia um lixo.
A doçura então estava para terminar; Bruna havia colocado delicadeza e lentidão em suas mãos. Os últimos apertos nas teclas, e o silêncio preencheu o momento.
Logo em seguida, o barulho das palmas de dois pares de mãos ecoaram, Bruna virou-se e sorriu para suas duas empregadas. Bati minhas mãos também, sorrindo.
— Quer tentar? — seu sorriso murchou meu rosto, tirando meu fôlego.
— Não sei se...
— Ora, vamos! — suas mãos agarraram as minhas, uma cena cômica. Pequenas e aparentemente frágeis, apertaram as minhas patas de urso e posicionaram, seus dedos colados nos meus, cada mão em um conjunto de teclas. Seu rosto estava em cima de mim, os braços nos meus. Ela estava de pé, atrás de mim.
Aos poucos, ela apertava cada tecla, formando uma música simples, nada comparado às suas composições. Logo, ela criava intimidade com minhas mãos, já debruçada sobre minhas costas.
Tentei firmemente me concentrar quando a pequena elevação de seus seios roçaram o pano de sua camisa em minha nuca.
Porém, logo identifiquei a melodia.
— Argh, Bruna! — larguei as teclas e as suas mãos, apoiando minha cabeça sobre os braços, escondendo-me, enquanto ela ria freneticamente. Em um movimento rápido, senti que ela voltara a sentar do meu lado, continuando a música, torturando meus pensamentos.
— Não me lembre mais disto! — meu grito saía abafado.
Bruna articulava seus dedos na música "Parabéns a você", ainda rindo. Quando terminou, me abraçou e disse baixinho:
— Não se preocupe, por favor. Treze anos não são feitos todos os dias.
— Nenhuma idade é feita todos os dias — falei friamente.
— Quanta raiva! Fiz festas todos os anos de minha vida, por que você não quer?
— Preciso repetir? — levantei a cabeça subitamente, uma péssima idéia. Bruna estava com o rosto tão próximo ao meu, e com o impacto de meu movimento, ela rapidamente afastou-se, largando meus braços.
Tentei parecer indiferente. Ela porém, arfava um pouco. Observei seu rosto por alguns segundos, me divertindo enquanto ela pestanejava e parecia dizer algo.
— D-desculpe — gaguejou, a maçã de seu rosto bem vermelha, que estava virado para o piano.
— Pelo quê? — indiferente até demais, deixei-a até sem graça, mais do que já estava.
Ela me encarou, balançou a cabeça negativamente.
— Nada.
Levantei, fui até a janela ao fundo do piano. Bruna ria sem graça.
— Bruna — passei o dedo pelo vapor que havia na janela, criando um risco. Isso possibilitou que eu observasse os pingos do outro lado do vidro, caindo lentamente.
— Oi? — e ela ainda arfava.
— Já imaginou que, amanhã, será a Mariana a vítima do "com quem será"?
Eu indaguei tão despreocupado, ou talvez um pouco. Estava pensativo, pedi a minha mãe que não fizesse um aniversário. Como foi um pedido sem chances de ser atendido, pude imaginar minha mãe, neste exato momento, preparando a comida para amanhã.
Mas Bruna parara de arfar, quando fitei seu rosto, ele estava paralisado. A boca semiaberta, os olhos grandes.
— Desculpa! Eu não queria falar isso! — corri para seu lado, por impulso tentando lhe dar um abraço. Bruna interrompeu-me com suas mãos.
— Não, está tudo bem. E eu já tinha pensando nisto, sim — sua voz agora estava distante.
— Desculpa. Mesmo. — consegui abraçá-la e esfreguei seu braço amistosamente, como um consolo, enquanto ela me lançava um olhar doce, elevando um canto da boca volumosa.
Meu ritmo diminuiu enquanto ela me levava para minhas fantasias, onde minha imaginação comandava tudo, em meu paraíso particular. Nosso olhar se encontrou, sua boca sumiu com o pequeno sorriso. Parei de criar atrito com seu braço, consegui sentir ambos corações, palpitando em um padrão veloz e forte. Meu rosto aproximou do seu involuntariamente.
— Você está fazendo isso novamente — o hálito quente e levemente doce encostou em minha pele. Acordei do transe.
— O quê? — eu me afastei.
Mas ela não respondera de novo, apenas riu.
— Toca de novo — pedi.
Um sorriso leve aprofundou-se nos lábios de Bruna. Ela virou o corpo para o piano e recomeçou a me surpreender.
Agora, os dedos fervilhavam sobre as teclas de cor alva, incrivelmente polidas. Uma mão trabalhava no conjunto de tom grave, apertando duas ou mais teclas ao mesmo tempo, sempre alternando. A outra mão caminhava com seus dedos pela parte de som agudo, aleatoriamente. A olho nu, poderíamos dizer que era apenas passar as mãos, apertando quaisquer tecla. Ledo engano. A melodia era tão perfeita e bem composta, creio que até um gênio da música poderia intimidar-se ao ver o talento de minha melhor amiga.
Melhor amiga, que eu não tinha tanta certeza se ainda amava.
Eu sabia que algumas poucas semanas não fariam absolutamente nenhuma diferença em meu sentimento, mas com Mariana jogando, era um caso totalmente diferente. Quando eu a encontrava, Bruna era esquecida por completo, como se nunca havia existido. Bruna e qualquer outra pessoa. No entanto, em situações, antigamente rotineiras, como a de hoje, era um tanto incômodas. Bruna cutucava dolorsamente a ferida que estava prestes a se curar a cada dia. Mariana e Bruna conflitavam sem se falar, em uma espécie de briga com meu coração. A ferida que completaria treze anos daqui a quatro meses — em novembro, quando Bruna nasceu, e eu a conheci, mesmo sem poder falar — estava sendo suturada todos os dias com Mariana, mas também alargava-se com Bruna.
Foi então que eu comecei a lutar para aprender uma coisa importante. Todos os dias, em minha mente este aprendizado já era claro, quando eu estava com Mariana. Porém, ao visitar Bruna, ela transmitia uma mensagem por telepatia, de que eu não aprendera nada.
Eu gostaria de aprender que não namorava Mariana por uma causa egoísta, como tentar esquecer Bruna. Não a namorava com o propósito de amenizar a dor existente ali, que sempre era tão intensa e torturante a cada desejo meu de tocá-la de outro modo, de beijá-la até arrancar seu fôlego, de fazer dela minha namorada, de dizer "Eu te amo" da forma em que eu realmente a amo, e não como uma amizade duradoura.
Eu tentava aprender que Mariana aceitara namorar comigo para eu realmente amá-la e fazer dela a garota mais feliz do mundo. Não a usaria com fins apenas voltados para mim. Eu a faria feliz, e seria também.
Eu a amaria.
— Acorda — um estalo de sua mão sobre meus olhos me fizeram despertar. Pestanejei, logo depois lhe encarando. — Você anda muito pensativo. Vou para de tocar. — suas pernas já estava para fora, ameaçando se levantar.
— Não! — pus a mão em sua cintura, com a finalidade de impedir que ela saísse dali. Mas fora inútil.
— Vamos na varanda, vamos pensar em paz — ela puxou minhas mãos, e lançava um olhar feio em direção à sala de jantar, onde as empregadas conversavam, com uma empolgação anormal.
O símbolo estampado naquele cômodo ao ar livre, no primeiro andar do apartamento mesmo, era de conforto, e nada mais. Os móveis de vime com assentos brancos contrastavam com as almofadas de cores azuis, em tom escuro. Eram baixos e amplos. A decoração era de flores finas, e ao lado direito, uma mesa de jantar fazia parte de vários churrascos nos fins de semana. Bruna apertou um botão que ficava no beiral da cerca de concreto, e os vidros laterais fecharam-se automaticamente, deixando apenas os vidros da frente abertos. Sem largar minha mão, me fez sentar ao seu lado, enquanto agarrava uma almofada, levando-a para seu colo.
Apoiou a cabeça em meu ombro, e não pude me controlar para não contornar seu ombro com meu braço, abraçando-a confortavelmente. Observei atentamente seus olhos, que assistiam o céu desaguar, porém com um azul não tão triste. O céu não estava cinza, estava azul.
O silêncio, a não ser pela chuva densa que caía em linha reta, era pela primeira vez, bom. Uma paz indescritível tomava conta daquela varanda, e eu tinha certeza que faria eu pensar naquilo, antes de dormir.
— Pode ser que eu não demonstre isto, mas ainda me fere muito. — sua voz não ultrapassava um sussurro rouco, mas ainda sim estava calma. Tive vontade de dizer para não falar de sua dor, mas seria egoísmo. Eu também queria falar da minha dor.
— Dói... a mim, também. Você não sabe o quanto — tentei dizer, em uma voz baixa também, agoniada. Bruna virou a cabeça rapidamente para mim.
— Como... como assim?
Suspirei fundo, depois de uma última olhada no fundo líquido de seus olhos.
— Desde o dia em que te contei — minha voz era monótona e casual — sobre ela, desde aquele dia em que você desabou... se acabou em lágrimas, não consigo mais ser totalmente feliz, Bruna. — na verdade eu nunca fora — Há uma ferida em mim... não consigo consertá-la.
Silêncio. Uma pausa entrecortada por ruídos do vento se debatendo contra o vidro e do ronronar da gata Kate, que roçava-se em minha perna.
— Ela está ali para lhe ajudar, agora — sua voz era tão baixa que quase não ouvi. Uma ventania ultrapassou a frente da varanda, balançando as flores e nossos cabelos.
— Ninguém pode fazer isto, Bruna.
Seus olhos me contemplaram com dor, acima de tudo.
— Não vou parar de sofrer até ver você feliz novamente — beijei sua testa, apertando-a mais. Ela parecia uma boneca frágil e pequena em meus braços, pedindo abrigo neles.
A chuva aumentara, raios eram vistos no céu, agora mais cinza. Os pingos não paravam de cair, precipitando sem preguiça.
— Só vou parar de sofrer quando ter você novamente, só para mim — senti uma pequena poça em minha camiseta, não havia percebido que ela começava a chorar, de novo. Não bastava o quanto ela já molhara minhas roupas?
— Pare. — pedi, secando as lágrimas, que agora fluíam fortes e rapidamente. — Se não parar, irei embora.
— Não — enxugou os pingos de seu rosto com as costas da mão, fungando freneticamente. Não a abracei novamente, por medo dela iniciar uma nova sessão de choro.
— Vamos mudar de assunto. Como vai o teatro?
Bruna então, controlou suas lágrimas e começou a contar, animando-se aos poucos, sobre o curso quase profissionalizante de sua principal paixão. Contava das atividades, das peças, de tudo. Eu ouvia, atentamente, com medo de um momento como aquele ser esquecido, amanhã, ao ver minha namorada.



Eu ainda estava agradecendo pelo presente de Mariana, enquanto ouvia Bruna, do outro lado do quarto, onde eu não podia vê-la, brincando com Mike. Lílite fazia companhia para Bruna, que de vez em quanto, desviava o olhar para onde quer que Mariana e eu estivéssemos.
Eu também. Sempre que Bruna vinha perguntar algo — não trocamos palavra alguma desde a sua chegada, apenas perguntas que se diziam importantes — era rápida e logo saía de meu campo de visão. Fora, com Lílite, umas cinco vezes na cozinha para saber se Mônica necessitava de ajuda. Demoraram uma hora no máximo por lá, e logo estavam aqui.
Tinha pena. Não poderia deixar Mariana para dar atenção às duas, não poderia chamá-las para se juntar conosco. Então, tão comicamente quanto ridículo, as duas ficavam do outro lado de meu quarto, onde uma parede nos separava. Eu brincava de roubar beijos com Mariana, e as duas cansavam Mike de tanto carinho e brincadeiras. Só que elas não precisavam ficar ali, à espreita, como se estivessem espiando. Conseguiriam muito bem andar pela casa, ficar conversando com Mônica.
E, ao menos terminei de pensar isto, e as duas desceram as escadas.
Mas eu estava feliz. Era o que importava agora, afinal, eu havia conseguido algo que ansiei durante muito tempo.
— Que horas você marcou mesmo? — Mariana desordenava meu cabelo, introduzindo as mãos entre os fios úmidos. Eu me encostava em seu colo, a cabeça abaixo de seu pescoço, o mais confortável impossível. Eu trocava o canal da televisão constantemente, inquieto, insatisfeito.
Por que eu chamei Bruna para vir mais cedo?
Superficialmente, eu queria demonstrar que nada havia mudado, como prometi há algumas semanas. Com a desculpa de que nossa amizade seria a mesma. Insisti carinhosamente que ela viesse, mas avisei que Mariana estaria aqui. Ela mesma recusou a vir, mas fui tão persistente e idiota, que lá estava ela, sem coragem para encarar o casal sobre a cama. Mas estava ali.
— Daqui a uma hora.
Depois de armar um caos sobre minha cabeça, Mariana organizou os fios e os deixaram em pé com gel, como estavam antes dela bagunçar.
A última hora antes de me jogar na fogueira passou rápido demais, eu me entretia com um programa na TV, o que era raro. Entre as gargalhadas e alguns toques de lábios, os números do relógio marcaram 19h. Gritei um palavrão que arrancou as risadas de Mariana, Bruna e Lílite. Decidi conferir a aparência no espelho ao lado do guarda-roupa. Era um traje para uma saída casual, e ao mesmo tempo, para minha chamada de morte. A tortura.
O cabelo brilhante de gel, penteado levei-um-choque que eu nunca usava, uma camiseta preta estampada, calças largas brancas e um All Star simples, cinza. Não pude deixar de olhar a gaveta de acessórios, e observar uma correntinha prata, a qual Bruna me dera no aniversário passado. Este ano ela ainda não me entregara o presente, mas quando chegou aqui em casa, notei que um pacote com uma fita preta enorme estava na cozinha, e Bruna e Mônica faziam de tudo para que eu não o visse. Confesso que a curiosidade quase me corroeu, mas me mantive.
O reflexo opaco da luz na correntinha fitava meus olhos, me deixando na tentação de colocar aquele cordão de prata em meu pescoço. Refleti durante alguns segundos. Mariana com certeza perguntaria da onde era aquela peça charmosa e cheia de lembranças para mim, e eu não poderia mentir na frente de minha Bruna. No entanto, dei de ombros e passei o cordão por cima de minha cabeça, ajeitando-o no espelho.
Saí de meu guarda-roupa tecnológico — que ao mesmo tempo era um closet disfarçado, frescura que minha mãe mandou construir assim que completei quatro anos — e voltei para os braços de Mariana. Mal pude me sentir confortável, e eis que a maldita campainha soou. Corri para o andar de baixo, minha mãe já havia atendido a porta. Era Pedro.
— Tinha me esquecido de como você era pontual! — Pedro me abraçou e deu vários tapas em minhas costas, com um embrulho brilhante em mãos. Desejou-me tudo aquilo que se é dito em aniversários, com um entusiasmo inútil. Agradeci, mesmo que tivesse ouvido aquilo dele mesmo, à meia-noite de hoje, pela Internet.
— Se você não gostar... o problema é seu. — brincou ele, enquanto eu abria a caixa comprida e rasa, totalmente prateada. Um livro estava em seu interior. Mas não era qualquer livro.
— "Rise of the Ogre"! Eu não acredito! — empolguei-me rapidamente, mudando de idéia quanto à festa. Era um livro que eu queria ler havia tempo demais, e sua linguagem era apenas em inglês. Mas eu tinha conhecimento o suficiente na língua até para ler um livro.
Abracei-o novamente, pondo em evidência minha súbita alegria, tagarelando sem parar. Levei o presente para me quarto, e Pedro cumprimentava as meninas. Lílite sempre corava quando Pedro estava no mesmo ambiente, e desconfiava o porquê. Mas não tinha certeza.
Era quase claro que ela também era apaixonada por ele. Mas nem de Bruna eu conseguia arrancar esta quase óbvia resposta, então desisti de me passar por um suposto
cupido.
E como se 19h fosse um horário de trânsito humano, minha modesta casa entupiu-se facilmente. Havia gente que eu mal conhecia, e tive raiva de minha mãe. Sim, naqueles poucos minutos, Mônica transformou-se em uma mãe horrível que convidava todos os conhecidos possíveis para assistir seu filho em um inferno particular.
Mas o pior não eram os desconhecidos que mergulhavam na piscina e "acidentalmente" quebravam os copos de cristais do bar, e sim meus primos que não passavam dos oito anos, aqueles que minha mãe prometeu não convidar. Jurei que teria uma conversa séria e soturna o bastante para fingir que tinha moral com Mônica, a policial experiente.
Em torno das 20h, minha casa já chamava a atenção da vizinhança por completo. Meus tios que moravam tanto longe quanto perto estavam ali, jogando conversa sobre os mais diversos assuntos fora, em minha sala. Crianças de colo que eu tive que conhecer andavam desajeitamente apoiadas nas paredes e seguradas pelas minhas tias mais novas. Os primos que eram de minha idade flertavam vergonhosamente as meninas, incluindo Bruna. Apenas Matheus, o primo de dezesseis anos, sabia de toda minha história, minhas dificuldades de me relacionar, os fatores que influenciavam em meu inferno na Terra, tudo. E sabia também, sem precisar eu dizer palavra alguma, que todos aqueles primos traíras que paqueravam Bruna estavam quase a ponto de serem quebrados por um soco meu.
Entre um petisco e outro, eu atendia a porta, e minha casa lotava cada vez mais. Eram pessoas da escola, da família, do trabalho de Mônica. E mais presentes, incontáveis presentes. Alguns odiáveis, mas a maioria, graças ao Senhor que ouvia minhas preces regularmente, eram maravilhosos.
— E o meu presente? — não quis ser incoveniente, mas Bruna nunca deixou de me entregar algo que eu deseja muito, e sempre me surpreendia. E era a primeira a entregar, de todos.
— Calma! Não se preocupe, você terá o seu presente. — e ela caminhava de volta para a roda de garotas que ficava no canto de meu quarto, cochichando e olhando feio para mim.
Apesar da aglomeração nos três andares da casa, conforme os minutos passavam eu me sentia cada vez mais entediado, ou mais provável, triste. Mais um pouco e tinha certeza de que estava decepcionado. Bruna me garantira o presente, mas parecia que ela não me daria nada. Quando havia tempo, entre uma rápida conversa com um parente e outra, eu ia ao banheiro de meu quarto e me encarava no espelho. Também andava para o terraço de meu quarto, que havia trancado por precaução das crianças menores. Sempre pensativo.
E, como eu não esperava, a famosa hora do bolo não foi tão ruim. Fora um horror, fora totalmente indescritível e torturador. Todos os convidados amontoaram-se em minha sala de jantar, e quem não conseguia passar pelo arco da porta que agora aparentava minúsculo, ficava de espreita na sala de estar. O bolo, enorme e até que apresentável, por ser feito em última hora. Três camadas separadas por um pequeno pilar de metal, cada andar em uma bandeja de prata. Era inteiramente coberto por tufos de chantili. Digno de um casamento. E ali, observando as chamas das velas que indicavam "13", eu batia palma junto ao coro que gritava freneticamente a música do "Parabéns a você", em vez de cantarem.
Desta vez, como eu esperava, e graças às fofocas de meu namoro que foram espalhadas antes mesmo de eu descer de meu quarto para cortar o bolo, a idiota música do "Com quem será" foi exatamente com quem eu pensava. Mariana.
Quando cantaram o seu nome, ela caminhou empolgadíssima até o meu lado, atropelando quem estava em seu caminho, ou seja, Bruna. Ela não estava ao meu lado enquanto os flashes eram batidos em minha cara, enquanto as faíscas das velas queimavam o bolo. Ao meu lado não estava ninguém que eu desejava, como meus amigos. Estavam meus primos demoníacos e hiperativos, que enfiavam os dedos safados para dentro do bolo, crentes que ninguém fosse vê-los. E sim, não estava ninguém que eu desejasse mesmo, com Mariana incluso. Ela selou meus lábios, provocando gritos de felicidade e aclamação de todos ali presentes, menos o de Bruna.
Durante toda a tortura eu sempre contemplava o par de olhos mais lindo do universo, para avaliar a sua reação, ou até mesmo como um impulso, uma forma de dizer "Tire-me desse inferno, melhor amiga!". Ela respondia com um sorriso amarelo ou até mesmo gesticulava palavras acolhedoras, mas na hora da música temida, ela simplesmente fugira do ambiente.
Esperei toda aquela cerimônia de apagar as velas e inclusive fazer um breve discurso — no qual me saí muito bem, até um pouco divertido — passar para procurar minha melhor amiga, que não ficou todo o período para me acomodar, me acalmar diante daquelas pessoas. Vasculhei a casa inteira enquanto os outros entravam novamente na piscina ou comiam pedaços do bolo, mas ela não estava em lugar algum.
Resolvi procurar em meu quarto, mas não havia nada ali, a não ser o som ligado em alto volume, vibrando ao passar uma música eletrônica. Até entrei em meu guarda-roupa, mas nada havia ali.
Foi quando caminhei em frente à porta trancada e opaca de minha varanda. Olhei para a porta de meu quarto para certificar de que nenhum pentelho a atravessaria, e fui para a varanda.
Quem eu procurava estava ali, sentada com as pernas cobertas apenas por um shorts curto para fora da varanda, penduradas no ar. Estava sentada em cima da cerca que separava o chão seguro da altura perigosa de três andares. Podia ver um vulto entre a cerca de suas pernas balançando regularmente, mas a cabeça estava baixa, emitindo várias fungadas. Esperei alguns segundos, aproveitando enquanto ela não notava minha presença, e me aproximei.
Notei que vários lenços de papéis estavam ao seu lado, todos amassados.
— Você não está pensando em se matar, está? — perguntei em uma voz surpreendentemente feliz, e não acreditei que fosse pela festa. Era mais coerente que fosse porque eu havia achado Bruna.
Ela interrompeu uma crise de choro que estava começando, e virou a cabeça imediatamente para mim. Dei um sorriso amarelo, mas depois que notei que haviam lágrimas saindo de seus olhos, aproximei-me dela o mais perto possível.
"De novo não", pensei.
— O que foi? O que aconteceu?
Não pude deixar de terminar de falar e ela apoiou a cabeça nas próprias mãos, tendo mais uma crise sensível. Abracei-a como em todos os momentos que ela chorou, mas nada adiantara. Ela chorava ruidosamente, enquanto eu esperava ela conseguir falar. Foi entre a inconformidade de algo que eu não sabia o que era e fungadas assustadoras que ela conseguiu me explicar:
— Não sabia que substituir meu nome pelo dela no "Com quem será" iria doer tanto — quando terminou a frase, jorros de água rolaram pela face desesperadamente.
Achei que teria dó, mas tive vontade de lhe dar um tapa.
— Você está chorando por causa disso? — minha voz saiu áspera, no entanto esperei não magoá-la ainda mais.
— E-estou — larguei meus braços que abraçavam involuntariamente seu corpo, me afastando. Entendi que reconfortá-la seria pior para parar de chorar. Fitei as estrelas que cobriam o céu de um modo esparramado, tendo pela primeira vez, paz naquela noite. O silêncio preenchido pelas lágrimas barulhentas de Bruna deixavam a noite mais triste, arrancando de mim o empolgamento inacreditável pela festa. De vez em quanto, eu olhava pelo canto do olho para ver como estaria Bruna, e ela não saiu de sua posição de choro: a cabeça apoiada nas mãos. Caminhei pela varanda, esperando pelo momento certo. Tranquei a porta para certificar que ninguém nos interromperia.
Bruna então, depois de enxarcar seu oitavo embrulho de papel, silenciou o choro, deixando-o apenas em algumas lágrimas que escapavam uma vez ou outra. Passei a mão sobre suas costas, agora podendo fazer aquilo sem receio. Aos poucos, ela cedia, deixando que o silêncio dominasse o ambiente, e a dor passasse.
— Acho que Mariana precisa ir embora. São 23h agora. — sussurrei com doçura enquanto olhava o relógio e a porta. Ela assentiu, e voltei para a festa.
Procurei minha namorada, e não demorei a achá-la. Perguntou onde eu estava, e rapidamente inventei uma desculpa de que estava no telefone. Ela, como esperei, disse que sua irmã mais velha estava esperando-a na porta de casa. Beijei-a demoradamente, agradecendo sua presença e o presente que me dera. Acompanhei-a até a porta.
Quando voltei para meu quarto, vi que a porta do banheiro estava aberta e a luz acesa. Aproximei-me e vi Bruna ajeitando o cabelo, o rosto molhado. Seus olhos estavam um pouco ruborizados, vários pontos em sua face também. Depois de se enxugar, apagou a luz.
— Ela já foi — falei, em tom de acaso. Ela obviamente estava melhor.
— Ainda tem muita gente lá em baixo?
— Sim — lamentei.
— Droga! — seus olhos percorreram o chão, mas logo voltaram para os meus. — Minha cara está muito feia?
— ... não?! — Era impossível ser feia. Bruna era linda sempre.
— Estou apresentável? — insistiu, agora impaciente.
— Sim, está — sorri rapidamente, e ela disparou porta afora. Disse para eu não segui-la.
Voltei para o terraço, sentando no mesmo local que estava Bruna. Observei distraído o céu quase negro totalmente limpo, sem muito no que refletir sozinho. A calmaria invadia meu espírito novamente, devolvendo-me a preguiça, a paz. Estava com as pernas se agitando sobre o nada, pendurado na cerca, correndo risco de vida. Fitei o chão da calçada, que refletia a luz azulada do primeiro andar de casa. Ainda pude ouvir vozes entrelaçadas, unindo-se em um zunido só. Tinha a certeza de que todos aqueles que me parabenizaram estariam ali, aproveitando tudo o que minha paciente mãe e minha casa, que agora parecia um cubículo, tinham a oferecer de interessante. Também estava começando a me conformar de que eles começariam a deixar a casa assim que o dia seguinte chegasse, ou seja, daqui uma hora.
O clima estava seco; como eu não gostava, exatamente. Senti um pouco da claustrofobia invadindo meu corpo, mas respirei fundo e acalmei, quando o vento começou a assoprar as folhas dos carvalhos e os meus fios de cabelo.
Ouvi o barulho da porta abrindo-se, e de um modo provavelmente paranormal, eu sabia que era Bruna. Não virei para olhá-la, brincando comigo mesmo, testando minha habilidade em diferenciar presenças. Dei uma risada grave e sem graça.
— É tão... estranho. — arrisquei, ainda sem olhar para a pessoa que estava ali.
— O quê? — dei outra risada idêntica quando reconheci a voz doce e inacreditavelmente bonita. Ela pareceu não entender, mas me ignorou. — Cale a boca! — brincou — Venha aqui, o risco é menor de seu presente cair no chão e se quebrar em alguns pedaços.
Saí de meu assento novo — o qual, apesar da casa ser minha, nunca ter sentado ali, por ter vários outros lugares normais para se sentar, ou talvez por ter um mínimo senso de autoproteção.
Deparei-me com uma enorme — talvez medisse metade de minha estatura — caixa de presente no chão, comprida e gorda. Aparentava bem maior do que aquele pedaço que eu havia visto pela manhã, no balcão de minha cozinha. Era totalmente branca, envolvida por uma fita que vinha dos quatro lados, preta e de cetim. Era reluzente com a luz vinda da parede, mas, movido pela curiosidade, puxei a fita sem cerimônia.
Quando removi a tampa, meus olhos arregalaram-se e senti que minha boca se abrira. Bruna dava alguns risos disfarçados, esperando minha reação por completa. Uma capa preta e sinuosa residia o interior da caixa. Retirei o objeto um pouco pesado, abri o zíper.
— Um violão! Como... como você...
— Achei a sua cara — interrompeu-me — Não achei presente que mais combinasse com você. E eu mesma afinei.
— Adorei! — falei com sinceridade enquanto avaliava o instrumento preto com as bordas brancas. Suas tarraxas eram douradas e cintilavam quando encontravam a luz. Deixei o violão em cima da capa com cuidado, enquanto levantava-me para abraçar Bruna. — Obrigado mesmo! Adorei de verdade! — dei entusiasmo às palavras e ao meu gesto, levantando-a do chão com meu aperto forte. Ela apenas respondia com sorrisos demorados, que habitualmente derretiam meu coração.
— Eu sei que você não sabe tocar muito... mas eu também posso te ensinar agora — gracejou, e fazia expressões engraçadas, elevando as sobrancelhas. Apanhei o instrumento e passei os dedos sobre as cordas, maravilhado pelo som uniforme e agradável que saíra. Arrisquei uma pequena música e insignificante perto daquelas que Bruna dedilhava humilhantemente, e o som a transformou em um uma esplêndida melodia.
— Até que você não toca tão mal. — e deu mais um riso, para a coleção. Sorri gentilmente, agradecendo com os olhos mais uma vez pelo presente perfeito. Toquei novamente a mesma canção, encantado com o som que o aparelho produzia.
— Posso? — pediu ela, a voz simpática, quando terminei a infame música. Hesitei, sabendo que teria que me rebaixar diante dos cantos que ela produzia em seu violão. Imaginei como seria demonstrar novamente sua habilidade musical no novo instrumento, que faziam de minha pobre melodia uma canção apresentável e até que bonita.
Então, ela começou.
Os dedos finos e pálidos, assim como no dia anterior, trabalhavam alternavam de posição sobre o braço do violão, pressionando as cordas certas, enquanto a outra mão dedilhava uma corda por vez, unindo as notas que não faziam sentido para mim, em uma única música, uma única sensação. Era tão maravilhoso quando assustador. Não acreditei que provocaria uma emoção tão diferente quanto reconfortante, era quase tão boa como aquele torpor que eu sentia quando estava na presença de Mariana. O som acústico ajudava a trazer a calma e a harmonia de volta ao meu espírito, o toque de sua unha ligeiramente comprida e aparada em linha reta contra a corda emitia, a cada vez mais, a vibração artística de uma profissional de apenas doze anos, que transmitia ondas de felicidade e conforto através da melodia.
E, para meu paraíso estar completo, enquanto eu me deitava no chão para observar o céu e seu rosto concentrado na música perfeita, sua voz saiu em um contraposto de meu dia, o dia que apresentou-se um inferno, até aquele momento.
"No one knows what it's like
to be the bad man
to be the sad man
behind blue eyes
and no one knows
what it's like to be hated
to be faded to telling only lies
but my dreams they aren't as empty
as my conscious seems to be
I have hours, only lonely
my love is vengeance
that's never free"

(Limp Bizkit - Behind Blue Eyes)





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Capítulo 11 - Conforto


Vários pingos adornavam o vidro embaçado do lado de fora, com um pequeno círculo transparente sobre meu nariz e minha boca. Do outro lado de onde eu refletia sem conseguir parar, a chuva caía sem dó, aclamando pelo verão que estava apenas em seu início. O barulho quase silencioso dos pára-brisas era nauseante, o rádio ligado não estava ajudando em minha distração. Minha respiração era irregular, eu baforava a janela enquando relembrava de minha noite anterior, onde eu velava o sono de Bruna, por volta das três horas da manhã. Seu descanço era mais doce do que seu próprio aroma, era leve, vivo e divertido. Quase poder assistir seus sonhos era mais prazeroso do que ver um programa de televisão preferido, um filme que goste ou um jogo de futebol para quem é fanático. Sua pele ficava quente ao adormecer, eu podia enlevar-me de seu repouso tão perfeito, acariciando a maçã de seu rosto, beijando as costas de sua mão, e ela ao menos se incomodar com isto. Sussurrava palavras, aparentemente românticas, mas no fundo apenas amistosas e sinceras em seu ouvido, tentando fazer com que ela sonhasse com aquilo.
"Isso não vai mudar nada entre nós."
"Promete?"
"Prometo."
A pequena passagem que ocorreu segundos antes de nosso primeiro beijo caminhou pela minha mente em forma de uma pequena indigestão, perfurando a boca de meu estômago.
— Estou enjoado — sussurrei contra o vento levemente frio do ar condicionado, que também não colaborava com meu enjôo.
— Não posso parar o carro agora, está chovendo — disse minha mãe, com uma leve impaciência na voz.
Mônica detestava Mariana. Mônica detestava Mariana e todo o resto de sua família, que já dera problemas demais à delegacia. Ela estava me levando ao aeroporto para recebê-la de volta... e não era bem isto que ela queria. Discutiu comigo sobre querer pedi-la tão cedo em namoro, e ficou inconformada com a expressão de dor de Bruna quando foi deixá-la em casa. Ficou indignada de tal forma que parecia que Bruna era sua própria filha.
Mônica Medeiros. Tão bipolar.
Abri o porta-luvas, procurando algum tablete de bala. Achei uma, mas olhar o sabor, pude sentir que quase vomitaria. Joguei o tablete de volta ao seu lugar, fechando o porta-luvas.
Respirei fundo três vezes, e isto ajudou um pouco. Já havia lidado com e enjôo de carro, e não eram poucas vezes.
Mas tinha certeza que não era o movimento do carro e a claustrofobia corrente que eram os motivos do enjôo, e sim a viagem em si.
Agora, mais do que qualquer outro momento, era deprimente estar indo em busca de minha futura namorada que, verdadeiramente, não gosto. Porém, não estava indo em sua busca, e sim procurando paz para minha dor que durara mais que doze anos.
E daqui a algumas semanas, treze anos.
Mônica, por outro lado da momentânea depressão, estava preparando minha próxima festa de aniversário. Pedi a ela quase todo dia que desistisse da idéia, afinal era horrível me imaginar de novo, na frente de uma mesa decorada sutilmente, com os primos pequenos à minha volta, e os melhores amigos distantes de mim. No entanto, ela concordou em convidar os primos mais velhos e meus amigos. Só.
Então, o problema não seria a repetitiva festa, mas a vítima do famoso canto "com quem será". Não há mais graça, ainda mais se for com uma pessoa diferente de Bruna, que já era perita em participar de tal brincadeira ridícula. Principalmente, se a brincadeira fosse comigo.
Agora, então, eu teria que apresentar Mariana como minha nova e primeira namorada e selar seus lábios na frente de todos, e não beijar a bochecha de Bruna quando a brincadeira fosse terminada.
Apesar da controvérsia, o devaneio diminuiu um pouco minha náusea. Estávamos perto do aeroporto, e Mônica estava ficando cada vez mais mal-humorada.
Eu porém, estava cada vez mais aflito, inquieto. O café-da-manhã digerido agora queria voltar para fora, insatisfeito com o que encontrou em meu estômago.
Ou seja, borboletas.
— Vai mesmo conseguir ser simpática com eles? — falei agora um pouco mais alto, mas ainda com ânsia. Mônica concordara, antes de sair, que iria me fazer companhia, até levá-los para casa, onde eu iria ficar à sós com Mariana.
— Posso não ser das melhores mães, mas acho que sou boa atriz — e deu uma risada baixa, o rosto empinado.
Assenti.
Ela estacionou o Audi com cuidado e destreza, abrindo o guarda-chuva marrom.
Um silêncio preenchido apenas pelo barulho dos aviões e pela chuva que molhava a barra de minha calça era irritante.
Do silêncio, porém, Mônica se perguntava porque seu filho era tão mau. Isso era um fato, eu podia sentir.
— Não te criei deste jeito, Guilherme. O que fez você deixar Bruna com uma cara tão feia hoje de manhã? — sua voz era cortada por alguns raios que caíam longe dali.
— Acho que não é questão de como fui criado... e sim de como pensei pra chegar nisso.
— E como você chegou nisso? — o aeroporto, agora estávamos em seu interior, era um tanto quente e convidativo. Minha náusea passara, mas ainda eu insistia em ficar nervoso. Era tão grande quanto iluminado, onde passamos por mais uma barreira de portões de vidro automático, e as lojas anunciavam produtos caros e precisos. Lanchonetes, lojas de roupas, etc.
— Cansei. Simplesmente cansei de ficar correndo atrás de Bruna — minha segurança foi tanta na frase, que não acreditei que estava nervoso.
— Vou fingir que acreditei.
Caminhamos em direção ao segundo andar, onde provavelmente Mariana apareceria. Certifiquei, pela quinta vez, de que o porta-anel estava em meu bolso, e que a coragem estava dentro de mim.
Ambos conferidos.
No elevador, era possível ter a visão dos vários aviões que decolavam, um barulho abafado pelo vidro. Uma música suave e instrumental soava pelo ambiente, parecia que tentava me tranqüilizar. Tentativa tão falível quanto a música do carro de minha mãe.
Realmente poderiam ter desistido de continuar os vôos naquele dia; justo aquele dia tão chuvoso.
Mas era algo lógico: chovia bem no dia em que eu iria fazer a coisa mais corajosa de minha vida.
— Ainda está enjoado? Posso comprar alguma coisa.
— Não, passou. — tirei a jaqueta cinza e a segurei em meu ombro.
— São 9:36h. Ainda temos algum tempo — Mônica agora parecia bem-humorada. Era como uma criança, gostava de luzes, ou como uma adolescente, gostava de lojas. Caminhamos pelos comércios, ela comprou uma calça para si mesma. Nada ali chamava minha atenção, meu guarda-roupa fora completado mês passado.
Fomos procurar a sala de desembarque número 2. Lá sairiam os vôos nacionais, e sentamos nos bancos confortáveis à sua frente.
O mais cômico era o modo de como eu ficava impaciente com espera. Nunca consegui, de fato, esperar verdadeiramente por algo, com exceção para uma coisa que vocês já estão cansados de saber. Por ela, eu esperaria a vida inteira.
Nunca conseguia esperar por algo, se fosse quieto, sentado, calmo. Sentado naquele banco, um porta-anel que mantia em segredo duas alianças que mudaria a vida de três pessoas, uma mãe que mais parecia uma amiga da mesma idade, balançando os cabelos curtos constantemente, eu batia o pé num ritmo irritante. Roía as unhas constantemente, desenredando as questões curiosas que apareciam no grande telão preto às minhas costas. Ia ao bebedouro, brincando com a água gelada demais para o tempo lá fora, bebendo litros até minha bexiga implorar pelo mictório. Incrivelmente, quando voltava, minha mãe estava ali, imóvel, com a paciência que a profissão e a experiência lhe oferecera, em porções generosas. Ela fitava ora fitava o vazio, ora me olhava por inteiro, ora mexia em seu celular multifuncional.
Então os números grandes do telão marcaram 10h. O aeroporto de Verone City não era famoso por atrasar vôos. Então, o vôo 1943 chegaria exatamente nesse horário.
Comecei a suar frio — era muito ruim. Não podia abanar-me porque estava frio, mas transpirava. O conjunto de borboletas voava novamente, em vôo alegre em meu estômago, e tive que tomar mais água para ver se acalmava elas. 10:01h.
Uma senhora de cabelos alvos e baixinha saiu com uma pequena mala de rodinhas. Logo depois, uma jovem alta, uma mulher, uma criança ativa e, finalmente, uma garota de longos cabelos lisos.
— Mariana! — meu grito extremamente alto foi involuntário, algumas pessoas se deram o trabalho de me encarar.
Não liguei.
Levantei-me imediatamente da cadeira, ela procurou de onde saíra a voz. Acenei alto, e ela estampou um sorriso enorme ao me reconhecer.
Abandonou sua mala, correndo de braços abertos.
— Que bom te ver! — estendendo as vogais da frase, pulou em meu colo, afundando o rosto em meu ombro. Ignorei tudo à minha volta, não importava mais nada.
Meu refúgio estava ali, novamente me levando às nuvens. Eu conseguia sentir o torpor, a sensação de conforto me agarrando para livrar-me de todo mal, de tudo o que eu quisesse realmente afastar de mim.
Ou talvez não.
— Senti saudades — minha voz misturou-se em seus fios lisos artificialmente, porém brilhantes. Não era capaz de dizer se poderia ser verdade ou mentira, mas... era como se me forçassem.
— Quase morri de saudades. — E me beijou duas vezes, selando meus lábios. Os olhos de esmeraldas transmitiam doçura, o que eu realmente precisava para me acalmar.
Quando seu corpo foi para o chão, segurei forte em sua mão, cumprimentando o resto de sua família problemática. Era indignante, todos pareciam família da antiga Mariana. A miopia era hereditária, o cabelo ondulado e preto era visto em cada um deles. Mariana era a mais nova intrusa, a adotada.
— Vamos para casa, agora. Quero contar tudo para você. — despedi-me de minha mãe, e ela desapareceu pelas portas de vidro do aeroporto. Parara de chover, então caminhei ao lado de Mariana até chamar um táxi, sempre brincando com o dedo no bolso, sobre o porta-anel.




— Mas eu ia te ligar! - menti descaradamente, enquanto entrávamos em sua casa modesta, eu pela primeira vez.
A entrada era, primeiramente, a sala de jantar, com uma porta diretamente para a cozinha. Ao lado direito, íamos para uma área com uma enorme estante entupida de incontáveis livros, uma escrivaninha e um belo quadro. Por trás da estante, havia uma parede com uma TV e um sofá. O irmão mais novo de Mariana jogara-se no sofá, ligando o video-game.
Subimos as escadas, e notei que a decoração feminina — obviamente propício, afinal a casa era governada por mulheres — emanava tudo. Desde os quadros às estatuetas modernas. Eram, ao todo, sete cômodos no andar superior. No térreo, apenas quatro o compunham.
Mariana, assim que entrou em seu quarto, ligou o aparelho de som e despejou-se na cama, coberta por uma colcha fina, estampada por círculos e flores, variantes de branco ao verde-limão.
Todas as paredes eram brancas; o teto era verde escuro. Ela sempre disse que quando ficava confusa, a cor a ajudava a organizar os pensamentos.
Era uma cor viva, ativa, prática. Do tapele felpudo ao lustre moderno, o verde estava presente. Sempre em tons alternados, mas estava ali.
Me senti em uma floresta.
Sentei ao seu lado, acariciando seus fios finos e amarelados.
— Damien Rice — falei, em tom indiferente, reconhecendo a música e quem a cantava.
Um sorriso deu vida ao rosto dela, e conseqüentemente ao meu também. Eu sabia que tinha deixado a tristeza para trás, era inevitável.
— Quer fazer o quê? — levantou-se, encostando na cabeceira da cama pequena. — Ah! Tenho uma surpresa para você. — e saltou para fora da cama, buscando na mala pesada, do outro lado do quarto.
— Também tenho uma surpresa... — olhei casualmente o chão, sempre cutucando a caixinha em meu bolso esquerdo. Ela não pareceu alterada, continuou procurando.
Achou um pequeno embrulho prateado, em formato irregular. Ela o segurava de modo que parecia macio.
Veio até mim novamente, sentou ao meu lado.
— Para você. — e entregou o pacote para mim.
Fiz uma cara de espanto. Sorri involuntariamente.
— Obrigado — e abri com cuidado.
Retirei um urso de pelúcia peludo e macio. Seu pêlo era bege, quente como um cobertor. Em sua pata esquerda, estava escrito "Me to You".
— Adorei — era verdade. Um apetrecho tão romântico não era má idéia. Selei seus lábios, outra vez, involuntariamente. Puro impulso.
— Ah, também tem isso — um porta-retrato preto, com várias fotos nossas nas laterais. No centro, a foto bem maior, e eu a abraçava por trás, beijando sua bochecha.
Uma memória ousou interromper o momento, levando consigo meu sorriso.
Era tão semelhante à foto minha com Bruna. Ao meu retrato com ela, que sempre ficou ao meu lado quando eu adormecia.
Uma pontada forçou minha mão ir até meu peito para segurá-lo.
A partir de hoje, o retrato que ficaria em meu criado-mudo era aquele.
— Que lindo. — foi o que minha voz conseguiu pronunciar.
— Olha o meu — e ela apontou o dedo para sua cabeceira, onde havia um porta-retrato idêntico, porém de cor roxa.
Forcei um riso baixo. Contemplei nossa foto, o que aquilo significaria para mim. O que mudaria em minha vida, em nossas vidas.
A vida de três pessoas. Minha, de Mariana, e de Bruna.
Ela observava meu rosto, parecia que estava tentando decifrar meus pensamentos. Mantive a cara sóbria, tentei dar um sorriso. Falhou.
— Agora, minha surpresa — estava determinado agora. É claro que não desistiria tão fácil, por causa de uma simples imagem.
— Ah, sim. É verdade. O que é? — tive dó de Mariana. Tão despreocupada e cansada da viagem. O tom distraído não significava que ela estaria pronta.
Mas nada me impediria.
Peguei sua mão direita, coloquei em minha perna, ainda segurando. Enfiei a outra mão no bolso, apertando a caixa.
— Sabe — comecei, fitando suas pernas cobertas por uma calça cinza. — Eu tomei a liberdade de fazer uma coisa enquanto você estava fora.
Era tão inútil aquela conversa. Era perceptível, fitando seus olhos, que o brilho já estava muito visível.
— Pensei bastante, e comprei isto. — agarrei a caixinha, coloquei entre nós. Abri.
Sua boca se abriu, os cantos dela se elevaram. Ela me encarou com as esmeraldas brilhantes.
— Quer namorar comigo? — um choque leve correu por meu corpo, tentando fazê-lo tremer. Eu não sabia o impacto daquela frase, era tolamente frio.
Esperei o abalo a emoção que, sem desejar, fez meu sorriso manifestar-se novamente, acabar. Impossível, afinal aquilo poderia ser seu maior sonho. Ela pegou os anéis, observou-os.
— Claro que quero! — exclamou como se fosse óbvio até para uma criança.
Seu sorriso me esquentou, e aos poucos coloquei o anel em seu dedo anelar. E ela colocou o outro anel em meu dedo.
Mas ela ainda estava admirada.
— O que foi? — perguntei apenas para descontrair. A resposta era clara.
— Eu não acredito! Foi tão... de repente! Foi tudo o que eu sempre quis! — ela gesticulava comicamente as mãos, abrindo e fechando-as. — Mas eu nunca imaginei que seria... que seria hoje!
— Quer que eu peça outro dia? — brinquei, o rosto sério.
Ela riu, jogando a cabeça para trás. Puxou-me pelo braço, fazendo-me ficar por cima de si, deitada. Beijei sua boca minuciosamente, experimentando, agora calmamente, a textura de seus lábios. Ela deixava, pacientemente, eu executar meu teste. Repuxei seu lábio inferior levemente, fechando meus olhos.
Então nos beijamos enquanto começava a chover novamente. Os ruídos do cair das gotas em cima do telhado, nas folhas das árvores, na rua, era embalante. Eu estava em meu lar, no meu refúgio. No novo conforto que passaria a me curar todos os dias, ou a cada vez que nós nos víssemos.
Dedilhava os fios finos e frágeis de Mariana, estávamos sentados de frente para o outro, os lábios colados. Nossas línguas enroladas em uma só, seus dedos finos andando por meu rosto.
Não era, nem nunca seria o protótipo do paraíso que eu gostaria de possuir, mas era um tipo desconhecido. E bom.
— Você às vezes não parece ter doze anos. — disse em voz baixa e quente, os olhos esverdeados calorosos.
— Nem você aparenta quatorze. Mas por que não pareço ter doze? — uma pergunta inútil, até eu mesmo reconhecia não ter a idade que tinha. A aparência, os pensamentos. A modéstia também.
— Preciso dizer? — até ela.
— É bom ouvir novamente — sorri.
— Uma criança de doze anos nunca me encantou tanto.
— Ora, criança! — elevei minha voz uma oitava, rindo um pouco. — Então você não se importa em namorar uma criança?
— A verdade? Não.
Elevou os cantos da boca, mostrando os dentes brancos. Incentivou-me a beijá-la novamente. Incrivelmente já acostumara com os beijos, tão facilmente que impressionava até a mim mesmo. O tecido era familiar, um tipo diferente, mas reconhecido. Até mesmo no dia em que eles se encontraram pela primeira vez, o sabor era doce.
Doce como a infância, como o abraço de uma amiga, as palavras ressussitadoras de minha mãe.
Uma velha amiga...
— Agora você pode dizer que me ama? — o cuidado especial nas palavras, querendo não ser incoveniente. Grudei minha testa à sua, já estávamos enrolados em sua colcha fina, a cama desorganizada.
— Claro. Te amo — não podia ser perfeito. Era humanamente impossível. Ela não poderia ser tão perfeita, nunca fora. Mas por que eu me sentia tão bem?
Não havia o porque agora. Não mais.




Capítulo 10 - Alianças


Minha cabeça baixa amenizou a dor; repousei-a nas mãos, apoiadas nos joelhos. O barulho constante do chuvisco lá fora fez com que eu organizasse meus pensamentos, mas apenas parcialmente. O silêncio comum de casa era familiar mas terrivelmente inquietante, como se estivessem dando lugar às vozes que falavam em minha mente, responsáveis pela pontada que incomodava.
Os números digitais de cor branca diziam que eram 23:45h. Amanhã eu haveria aula. Já passara da hora de dormir, senão seria obrigado a cochilar no intervalo da escola.
Dei de ombros.
A cena continuava a rodar em minha memória fresca como um pião; eu consolando Bruna por uma coisa que eu mesmo iria fazer. E vou mesmo. Estava decidido, não haveria como voltar atrás.
Com algum esforço, as lágrimas dela secaram e acalmaram-se há poucas horas. Isto deu motivo para eu ir embora, já que ela estava em um estado melhor.
Algo que era preciso fazer, e não que eu quisesse.
Queria poder dormir ali com ela, acalmá-la e dizer que estava tudo bem. Dizer e fazer o possível que não fosse uma das últimas vezes que íamos ficar tão próximos, ou sozinhos.
Quando cheguei em casa, ainda tive que suportar alguns minutos de minha mãe falando sem alguma pausa para perguntas ou opiniões. E o mais intrigante é que ela tinha total razão.
Disse que não é a primeira vez que penso em mim, mas entendia meu sofrimento. Que mãe não entenderia.
Tagarelou que, mesmo eu não percebendo, fui egoísta o tempo todo. Agia muitas vezes, como nos nossos dois beijos enlouquecedores, sem pensar direito, colocando minha necessidade de cura em primeiro lugar. A cura que eu precisava para o amor que eu carregava nas costas e no coração, durante toda minha vida.
A paixão por minha melhor amiga virara obsessão; disso eu já tinha conhecimento o suficiente, mas também chegou a ultrapassar o senso de amizade.
Estávamos na quinta-feira. Eu teria apenas amanhã para me "despedir" de Bruna, no sábado, quando Mariana chegasse de viagem, eu a pediria em namoro.
Levantei a cabeça. A tontura passara, apenas precisei me acostumar com a claridade. Escovei os dentes, e desmoronei na cama.
Cansado demais para sonhar, dormi rápido, sem nenhuma interrupção.
Despertei assim que o relógio marcou 6:14h. Acordei disposto, renovado, uma coisa difícil de se ver comigo. Mastiguei meu café-da-manhã indiferentemente, pensativo. Aproveitei que estava com tempo e tomei uma ducha, escovando os dentes no banho. Depois, peguei minha mochila e saí para o frescor da manhã.
Era o único período do dia que eu gostava, além da madrugada. No verão, eram as únicas horas em que eu podia andar na rua sem transpirar, ou até mesmo sem desejar uma piscina. Nas madrugadas quietas e levemente frias, principalmente nas esperadas férias, eu passava acordado na frente do notebook, sempre com a porta ou a janela aberta para o mundo. O vento circulava por meu quarto, e eu acompanhava as estrelas sumirem conforme clareava o céu.
Enquanto andava tranqüilo, a brisa leve levou embora meus pensamentos sobre o que faria naquele dia e no dia seguinte, balançando de leve meu cabelo molhado. O pêlo de meus braços se enriçava conforme a brisa aumentava, e sorri de leve por estar com camiseta, e não regata.
Na terceira quadra, encontrei com Bruna, como todos os dias.
— Bom dia - cumprimentei, e a recebi em meus braços um pouco frios. Ela vestia uma calça jeans branca e apertada, calçava um par de All Star preto e uma camisa listrada de manga curta e gola.
Tentei não olhar seu decote em U.
— Oi - e me beijou no rosto, retribuindo meu abraço. Mas não era o abraço que eu sempre tinha nas manhãs, e sim um abraço desconhecido. Sem vida.
Caminhamos em silêncio pelas próximas duas quadras. Silêncio terrível aquele, pouco comum nas primeiras horas do dia. É certo que ela nunca estava cem porcento acordada, e não precisava estar só porque eu estava. O barulho das folhas das árvores se debatendo eram, ao mesmo tempo, intimidador e reconfortante. Preenchiam o silêncio, mas diziam que havia silêncio demais para nossas vozes.
— Como você está? - perguntei de repente, chutando uma pequena pedra branca no chão. Minha voz era terrivelmente revelante, o guinchar de meu tênis na calçada molhada era irritante.
— Melhor - respondeu, hesitante.
Eu não ouviria aquela doce voz com tanta freqüência agora. Repeti várias vezes para mim mesmo, em mente.
— Que horas ela chega? - indagou, engolindo em seco. A dor era tanta em sua voz, que pressenti que choraria novamente.
Passei o braço por sua cintura.
— Dez da manhã.
Fitei o enorme prédio, agora próximo e muito visível. Uma pequena aglomeração movimentava-se na calçada, um tanto rotineiro aquilo.
Parei de andar, e avancei sobre Bruna, fazendo-a encostar no muro de uma casa. Coloquei os braços à sua volta, formando uma gaiola.
— Mas isto não importa agora, entendeu? - fiz a voz mais doce que pude. A mais convincente também, para ela e para mim.
— Sim - murmurou ela, deixando escapar uma lágrima. Sequei-a com o dedo, selando sua testa com meus lábios.
— Se você chorar, vou embora mesmo - falei em tom sério, enquanto virava meu corpo para o lado contrário, de brincadeira.
— Não - protestou, agarrando com força meu braço. Assenti, rindo. Ela não riu.
Continuei a caminhar para a escola.
— Parece até que vou morrer - brinquei novamente, mas só consegui arrancar um sorriso fraco.
Estava chegando semana de provas, para depois as tão esperadas férias. Terminando as tarefas, Bruna apanhava as apostilas e aprofundava os olhos nas letras monótonas. Sempre fora inteligente, a melhor da turma. Não havia necessidade de estudar.
Mas acompanhei seu ritmo, pensando que depois não haveria porque de reler a matéria nas vésperas das provas.
Quis conversar, mas ela não mostrou estar disposta. Cada comentário meu, ela murmurava algo insignificante. Cada pergunta, uma resposta monossilábica.
Decidi que não me incomodava mais a presença dos demais ali, à toa, com um professor fitando, entretido, às custas dos próprios alunos.
— Pare de me ignorar - murmurei com decisão, enquanto puxava sua mão para a minha, arracando-a do livro.
— Não estou te ignorando - segredou, fria e inexpressiva. Mentia bem, por isso eu sabia que aquilo não era mentira, apenas se fazia de difícil. Era simplesmente ridículo.
— Escute - pedi, paciente - Quer dormir em casa hoje?
Pensou. Fechou o livro.
— Está certo - concordou, hesitante. Nunca pensei que fosse tão fácil convencê-la.
Talvez os doze anos de conhecimento ajudassem.
— Vou sair depois da aula - falei, enquanto me virava de lado, encostando na parede - Depois, vou te buscar.
Contemplou meu rosto, como se esperasse afã por uma resposta.
— Vou comprar as alianças - revelei, temendo por sua reação. Olhei fixamente através do prata inebriante e profundo de seus olhos, a pupila retraída pelas grossas faixas de luz que atravessavam a janela ampla da sala. Aparentavam incerteza, e acima de tudo, dor.
A dor que eu não poderia mais curar.
E não respondeu.
De quinta-feira tínhamos uma aula a menos para assistir. Meu relógio de pulso marcava 11:32h quando saí da escola, após conversar com Pedro e algumas outras pessoas, algo que era habitual. Voltei para casa, peguei a bicicleta e fui para o centro, onde havia uma joalheria.
O centro não era longe. Algumas quadras, mas debaixo do sol infernal, não era convidativo. Queria comer algo para aplacar a fome, mas almoçaria ao lado de Bruna, em casa, no sossego e frescor dos cômodos grandes do meu lar.
Entrei na joalheria, e logo pedi. Uma tamanho 20, a outra 18.
Bruna seria tamanho 17, com certeza. Seus incríveis dedos finos eram um tanto macios quanto frágeis, e ágeis.
Dissipei Bruna de minha mente, mandando gravar nossos nomes nos anéis. Estava disposto à pagar, dinheiro nunca fora problema. Agradeci minha mãe mentalmente, enquanto observava casualmente os diamantes chamativos, na vitrine de cima. Experimentei a argola prateada, servia perfeitamente. Mandei colocá-las no porta-anel azul-marinho, entreguei uma nota verde e fui embora.
Guardei o embrulho em meu bolso mais fechado, pedalando agora para casa de Bruna. Missão cumprida.
Apareci na porta de seu apartamento, transpirando levemente, e com algo em meu bolso que parecia pesar toneladas. Ignorei, ao vê-la. Era tão extraodinário o modo como eu conseguia maltratá-la, como eu poderia ser tão áspero com ela. Chegava a ser desumano, ser ríspido com alguém tão belo interiormente e exteriormente, que ontem mesmo, parecia estar murcho, afogado em poças de água salgada.
Ela carregava uma pequena mochila escura, havia trocado de roupa. Estava perfumada, o rosto cintilante e glorioso. Sorriu ao me ver.
Pedalamos, como era um costume rotineiro no verão e na primavera, para minha casa. Meu devaneio continuava, assim como nós, a traçar seu caminho sem parar, sem se cansar.
— Cadê Mike? - interrompeu ela, o silêncio que durou todo o percurso, entrando em casa. Chamei pelo meu labrador, e ele veio, o rabo agitando-se veloz. Lambeu-nos com vontade e estava indeciso, não sabia para quem dava atenção. Decidiu perder seu fôlego com sua eterna "namorada", já que eu estava considerando a pequena mochila de Bruna, que levava para meu quarto, e não ele.
Na solidão parcial de meu quarto, eu vasculhava a segunda gaveta da escrivaninha, que guardavam DVDs. Selecionei alguns, logo mais colocando-os perto da TV. Pela primeira vez, depois de tantos anos convivendo com ela, não sabia o que fazer.
— Bruna - chamei.
Ouvi seus passos se aproximando enquanto eu buscara pelo meu calção de banho no guarda-roupa.
— Pode se trocar - afirmei, agarrando o calção branco.
Ela assentiu, pegando sua mochila e indo até o banheiro.


— Ahh. - suspirei satisfeito do almoço, enquanto me encostava na beira da piscina, de olhos fechados. Bruna divertia-se, tentando boiar sobre a água, sentada, me fitando intensamente.
— Você come tanto e não engorda - observou ela, olhando minha barriga e sorrindo. Envergonhado, endireitei-me, afundando mais na água. Minha barriga não era lá tão vergonhosa, até porque, sem ser modesto, eu tinha até alguns músculos visíveis. Mas era estranho ser admirado por alguém que não fosse você mesmo, ou sua mãe. Soltou uma risada ao ver que eu estava corando, e nadou por debaixo d'água até o outro lado. Pegou o controle remoto, ligou o aparelho de som que ficava ao lado da piscina.
Sorri ao ouvir as primeiras vozes da música.
I dreamed I was missing, you were so scared? - sussurrava em melodia, e nadava despreocupada. Aumentava o volume de sua voz conforme passava a música, sempre me impressionando com seu maravilhoso dom com a voz. Chegava a humilhar o cantor famoso.
Relaxei novamente.
So if you ask me then I want you to know - cantamos em coro, minha voz quebrando a harmonia que ela tinha com a voz do cantor. Calei enquanto ouvia ela cantando o refrão, então bebi meu refresco.
Aproximou-se.
— Sabe - começou, dando um ar repreensivamente indiferente - andei pensando melhor, enquanto você ia no centro.
— O quê? - perguntei, também tentando me passar por descontraído.
— Acho que não vai ser tão ruim assim.
Pisquei.
— Você sabe, namorar com ela - estimulou.
Elevei uma sobrancelha.
— Como chegou nessa conclusão? - indaguei, curioso.
Ela se afastou, nadando.
— Pensei bem... isto pode ser bom pra você. Não que, no começo, eu tenha pensado que você não quisesse. Aliás, não havia pensando em nada além de mim mesma, no começo.
Silenciei. Linkin Park na caixa de som não estava ajudando com meus raciocínios.
— É claro que eu ainda... não acredito que não vou mais ter você todos os dias comigo, mas aprendi a aceitar que você não é propriedade minha.
"Eu seria, se você quisesse", pensei. Dei uma risada totalmente sem divertimento, tentando fazer como se fosse por suas palavras tão... formais.
— E que você pode namorar quem você quiser - disse, hesitante.
— Você fala como se ela fosse algo sem importância alguma. - soltei, sem pensar antes. Mas sabia que, cordialmente, ela era sim, algo sem importância, para minha história com Bruna.
Ela virou de repente, e me encarou com demasiada dor nos olhos.
— Está bem, não vamos começar uma briga por causa disso - interrompi imediatamente. Não convidei ela pra discutir comigo. - Que bom você entender isso! - falei, sorrindo.
Ela deu de ombros, ainda muito distante de mim.
— Desculpa? - estendi os braços em sua direção, unindo as sobrancelhas, uma voz melosa. Ela me fitou, com ressentimento, e nadou até mim.
No entanto, quando chegou perto, mergulhou o corpo para baixo d'água, e me puxou pelos tornozelos. Afundei, sem força nenhuma, engolindo água.
Voltei para a superfície, engasgado.
— Bobão - riu, se afastando.
Quando consegui respirar normalmente, lancei sobre ela um olhar malicioso, e ela nadou até a outra ponta. Nadei por baixo para ganhar tempo até ela, mas foi inútil. Quando olhei, ela estava fora da piscina, correndo para o jardim dos fundos.
Segui seus passos rapidamente, umedecendo todo o chão, quase escorregando no degrau para fora. Ela corria, balançando os cabelos molhados, dando uma volta em torno da casa. Depois, voou para dentro dela, sempre com sua risada formando harmonia com a minha. Uma paz que eu não queria abandonar cedo, principalmente quando o relógio do dia seguinte apitasse 10h.
A hora em que eu teria que ir no aeroporto, para ver com quem eu iria passar o resto de alguns meses.
Ela já ia subir para o segundo andar, mas então eu consegui agarrar sua perna, que fez ela cair sobre os degraus.
— Droga! - gritou, fingindo um desesperamento, enquanto eu lhe fazia cócegas. Não simples cócegas, mas quase beliscões.
Ela não sabia se ria ou se implorava para eu parar, mas continuava se contorcendo, tentando agarrar meus braços.
— Repete comigo - falei, enquanto ela ria.
— Não! - gritou novamente.
— Repete - pronunciei sílaba por sílaba, fingindo autoridade.
Mas ela conseguiu escapar, e se jogou na piscina, por ver que era a única saída.
Mergulhei logo em seguida, gargalhando alto.
— Não! - falou alto, quando me viu quase próximo ao seu corpo, de novo. Tentei agarrar seus braços, mas ela afundou, nadando para o outro lado.
— Chega! - pedi, enquanto tentava olhar debaixo d'água para ver se ela não tentaria puxar meus pés novamente, mas ela já estava na superfície.
— Parei. - ela disse, mas ainda sorrindo.
Afundei um pouco.
— Vem cá - sussurrei.
Ela se aproximou, afundando também. Fitou a água.
— Eu te amo - disse, com água na boca, provocando bolhas.
— O quê? - seus olhos fitaram os meus, mas peguei suas mãos e as afudei junto comigo, puxando seu corpo para baixo.
Lá em baixo, era outro mundo. O azul turquesa inundou meus olhos, conspirando contra tudo que já vi. Não que nunca mergulhei em uma piscina, mas não lembrava como era entorpecente esquecer do mundo afora.
Mas ela estava lá, para não me deixar esquecer de nada.
"Eu te amo", mexi meus lábios em forma de cada sílaba, para Bruna. Ela prendia a respiração e balançava a cabeça negativamente, com uma expressão engraçada, e quase pude ler seus pensamentos. "Bobão."
Fui à tona, puxando ela também.
— Agora entendeu? - encarei seus olhos vívidos, que pulsavam de vida. Ela assentiu, abrindo um sorriso maravilhoso. Selou minha bochecha, me abraçando. Pousou a cabeça em meu peito.
Suspirou.
— Por incrível que pareça, eu também.
Absorvi as palavras, acariciando seu cabelo molhado.


— Por que ele é tão lindo? - perguntou Bruna, enquanto recolhia com a mão um punhado de pipoca.
— Eca - emiti nojo, enquanto bebia o refrigerante - prefiro a Bellatrix.
— Eca digo eu! - disse alto, enquanto passava uma cena de luta com magia na tela da TV.
Só consegui rir, procurando uma boa resposta.
Lá fora, o sol começava a sumir pelo horizonte, pouco a pouco. As faixas de luz que sobressaíam das nuvens atravessavam o vidro da janela da sala de estar, em direção à parede diagonal que ficava na nossa frente. Eu estava na horizontal, com a cabeça no colo de Bruna, sobre alguns lençóis. Assistíamos Harry Potter e a Ordem da Fênix, e já estávamos na cena quase final.
Avada Kevadra! - gritou a minha personagem preferida da série, enquanto magia de cor verde fluorescente saía de sua varinha torta, em direção ao seu primo, Sirius Black.
— Você viu? Ela matou Sirius Black! Ela matou o próprio primo! E como você pode gostar dela? - questionou Bruna, transpirando suas habilidades teatrais, como se estivesse mesmo indignada com tamanha ficção.
— Como se você nunca tivesse visto esse filme antes - ri, mastigando pipoca.
— Mesmo assim, coitado do Harry.
Achei tão medíocre discutir uma série que já quase não havia mais graça, que ignorei.
Quando os créditos do filme começaram a passar, espreguicei-me sobre seu colo, enquanto observava ela repetir meus gestos. Cutuquei sua barriga nua, o que fez ela contrair-se, rindo. Levantei-me e retirei o DVD, recolhendo os lençóis sobre o sofá, dobrando-os. Bruna virou-se para a janela, e fitou o pôr-do-sol, que de imediato, fez ela colocar um braço contra a luz, pela tamanha claridade.
— São 18:32h. Odeio o horário de verão - falei, enquanto empilhava os lençóis no pufe branco. Não havia mais noção do tempo nesta época, era como se estivéssemos nas 4 da tarde.
— Queria ver de perto - ela disse, apoiando a cabeça em seus braços, sobre o encosto do sofá.
— Vamos lá fora.
Levei-a até minha varanda, onde era tão mais visível e quase palpável aquele deslumbrante fenômeno da natureza.
Lá, os raios de sol transformavam-se em ondas de calor constante, que aqueciam o vento trazido pelas primeiras horas da noite. Faixas de cores diferentes estampavam-se no céu, variadas entre o laranja forte e o azul marinho. Tentei enxergar do outro lado, e só consegui avistar um crepúsculo que consumia o clarão vindo do horizonte. A fascinante esfera quase branca escondia-se lentamente sobre as casas e os prédios, encantando Bruna de uma forma extasiante, que fixava seu olhar somente na claridade vinda da esfera.
Ela sentou sobre a rede de algodão que agitava-se com seu peso, e fiz o mesmo.
Parecia que estava me ignorando, e estava, certamente. Eu examinava seus olhos, tão tentadoramente ofuscantes, vivos, como se pudessem falar por si, sós. Um prata que acabara de ser polido cansativamente, um cinza tão claro que quase seria confundido com a parte alva de seus olhos, se não fosse pelo brilho e os pequenos traços azuis neles contido. Olhos de uma felina, com a pupila totalmente redonda e negra. Expressavam harmonia e deslumbramento, agora que seu corpo relaxara.
Um outro mundo, fitar seus olhos. Como em baixo d'água.
Talvez não havia tantos motivos para olhar tão intensamente aquele fenômeno para mim como havia para ela, então deitei novamente sobre seu corpo. Admirei, com uma visão de baixo como era seu corpo sobre a luz solar.
Era ainda mais encantador.
Era quase involuntário dizer "Acorde", mas não quis interromper aquele momento único, com ela tão distraída e comigo querendo desesperadamente saber o que caminhava por sua mente. Segurei-me, tentando me distrair olhando, de vez em quando, as listras da rede.
— É tão... estranho - começou, a voz baixa, quase em um sopro.
— O quê? - olhei-a, sua expressão estava incrivelmente paralisada, sem olhar para mim.
— Saber que... vou ter que me acostumar a conviver mais com Lílite, ou Paula.
— Ah, Bruna... não vamos começar a...
— Deixa eu falar - interrompeu, olhando para as próprias pernas cobertas por um curto shorts.
Depois, voltou com os olhos para a claridade que se dissipava vagarosamente.
— Eu também queria encontrar uma pessoa - sussurrou, com uma leve camada avermelhada preenchendo suas bochechas.
— Não! - soltei sem pensar, levantando-me. Que droga era agir por impulso.
— Por que não? - perguntou, virando o rosto para me olhar pela primeira vez.
— Porque... porque... - lutei com alguma resposta coerente, mas nenhuma se encaixava. Todas que pensei faziam parte da mais pura verdade, nenhuma seria favorável. Ela balançou a cabeça.
— Tinha certeza que você sabia que eu também tenho todo o direito de namorar alguém - continuou, com desprezo na voz.
Desejei morrer.
— Eu sei disso. Apenas... - hesitei, achando melhor não falar absolutamente nada. - Desculpe.
— Tudo bem - mas suas sobrancelhas se uniram, formando uma expressão de perplexidade.
O tom de azul agora estava mais escuro e cobria mais as cores claras; uma leve brisa começava a circular pelo ambiente. As folhas balançavam, fazendo barulho.
— Não que não goste de estar com elas. Elas são minhas melhores amigas, muito pelo contrário. - hesitou, engolindo em seco. - Gosto tanto de estar com elas... quase como gosto de estar com você. - seus olhos me encararam, o rosto queimando ainda mais por um tom de sangue.
Foi assim por um bom tempo. Ficamos na pausa entre a troca de olhares, o rosto corando de vez em quando. Por dezenas de minutos, o silêncio permaneceu ali, calando nossas vozes, deixando que apenas o vento e as folhas das copas das árvores falassem; o calor do sol já era inútil. Vi o pêlo dos braços de Bruna se enriçarem, mas que não provocaram nenhuma mudança em sua posição, ela aparentava uma morta-viva. O que era vivo em seu corpo, e único, era o par de olhos prateados.
— Quero que você seja feliz com ela - murmurou, a voz menos dolorosa. - Sinceramente.
— Obrigado - respondi, sem vontade. Era claro como água que ela não queria desejar isso, e para isso estava tão silenciosa. Estava criando coragem para dizer aquilo, lutando com as palavras.
O sol já desaparecera. Não havia mais luz ali, a não ser da varanda. Uma mísera lâmpada elétrica, que não produzia calor. Porque Bruna estava totalmente fria.
Eu também.
— Quer entrar? - perguntei, com receio. Era como mexer com uma ferida ainda aberta, a carne vermelha ainda aparecendo.
— Fique aqui comigo - pediu. Sua voz agora recuperou quase todo o tom doce que possuía sempre. Aparentava de uma moça que pedia humildemente que eu a ajudasse em algo importante, não uma garota que estava sofrendo pela perda de um amigo.
Repousei as costas em um lado da rede, e a puxei com cuidado para meu colo. Ela cedeu aos poucos, com algumas poucas gotas largas de água saindo de seus olhos. Não tinha expressão de dor, ela não emitia sons de choro. Mas chorava, e seu coração doía, pedia pela ajuda do meu, quase curado.
Ou quase ferido.
— Não chore - sussurrei em sua orelha, encostando sua cabeça em meu ombro. Um grilo começou sua sinfonia, e isto me acalmou. Enrolei uma mecha de seu cabelo castanho em meu dedo, brinquei levemente com ele.
— Por que, Guilherme? - balbuciava em agonia - Por quê? Por que eu sei que não vou me acostumar a te perder? - e meu anjo da guarda não cessava às lágrimas, simplesmente escondia-se em meu peito, o rosto distorcindo em melancolia.
— Shhh. - eu murmurava, secando todas as lágrimas que podia, não acreditando que eu era capaz de fazer uma coisa que só a magoaria.
E novamente, o anjo estava murcho, inseguro, indefeso, afogando-se no próprio choro que não a abandonava, que eu não conseguia fazer abandoná-la. O anjo sem asas chorava, chorava com toda a vontade que possuía, toda a dor transparecendo no momento.
Nunca pensei que a situação poderia se reverter; no entanto, lá estava ela, passando ao contrário.
O anjo chorou, esperneou, me machucou. Apertei sua cabeça contra meu peito, querendo transmitir segurança, mas nada ali havia mais sentido para ela, nada havia de ser feito. Nada mais era possível para consertar.
Esperei que a água evaporasse, e o anjo finalmente parasse com a crise. Sim, porque aquilo era apenas uma crise, haveria como passar.
Pelo menos era o que eu pensava, querendo me enganar.
Não pronunciei nenhuma palavra com o receio de falar alguma besteira, então calei. Quando o anjo finalmente cedeu, rendendo-se ao cansaço, ajudei-lhe a levantar.
Bruna esfregou o rosto com as costas da mão, apanhou sua mochila e foi ao banheiro. Iria se lavar, talvez até colocar os pensamentos em ordem.
Desprezivelmente, me deixou sozinho na nostalgia de meu quarto, onde, ao som de Rufus Wainwright, as primeiras gotas salgadas começaram a rolar por meu rosto, manchando o lençol de minha cama. Pouco a pouco, foram umedecendo minhas bochechas, dando um tom acinzentado ao lençol branco. Eu sentava com as pernas em X sobre a cama, fitando apenas as lágrimas que no lençol se dissipavam.
Quando finalmente consegui enxugar todas, Bruna saiu do banheiro. Deitou em minha cama, e fui me lavar também.
A água em jato da ducha relaxou, como todas as vezes, meus músculos. Funcionava como um anestesiante, e quando percebi, estava há quase quarenta minutos de baixo do chuveiro.
Girei a torneira, passei a toalha por meu corpo. Vesti uma camiseta limpa, uma bermuda bege.
— Está com sono? - Bruna estava recostada em minha cama, o edredom escuro sobre sua regata clara. Observava o porta-retrato que situava-se geralmente em meu criado-mudo, mas agora ela apertava-o, apoiando por cima das pernas. O rosto era sóbrio, mas eu quase pude enxergar que meu lençol tinha ficado mais cinza.
Fui para o seu lado debaixo do edredom, e fitei a fotografia onde eu beijava sua bochecha. Rapidamente, um flashback ocorreu. Era outono do ano passado, as folhas douradas e alaranjadas precipitavam, inúmeras, sobre nosso fundo. Ela, com um cachecol xadrez e eu, com a gola de minha camisa toda amassada, com meus braços a agarrando por trás. Ela sorria, tão sinceramente.
Tempos que não voltam mais.
Beijei seu rosto, provoquei. Afastei seu cabelo da orelha, mordi o lóbulo, mas como um gesto de um amigo que queria apenas provocar risadas, não como um sedutor barato.
— Prometo que essa cena poderá se repetir muitas vezes - murmurei contra os fios curtos de seu cabelo, que molhavam o travesseiro.
Deitei meu corpo, ela também. Virei-me para ela, fiquei acariciando seu rosto. Respirei seu cheiro, o cheiro que lembrava o conforto, uma amiga velha, uma boa vibração.
O prata de seus olhos era ofuscante, me contemplava tão encantadoramente, mas eu não tinha tanto interesse para ela.
— Eu te amo - ela segredou, fechando os olhos.




Eu também.


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