Capítulo 10 - Alianças


Minha cabeça baixa amenizou a dor; repousei-a nas mãos, apoiadas nos joelhos. O barulho constante do chuvisco lá fora fez com que eu organizasse meus pensamentos, mas apenas parcialmente. O silêncio comum de casa era familiar mas terrivelmente inquietante, como se estivessem dando lugar às vozes que falavam em minha mente, responsáveis pela pontada que incomodava.
Os números digitais de cor branca diziam que eram 23:45h. Amanhã eu haveria aula. Já passara da hora de dormir, senão seria obrigado a cochilar no intervalo da escola.
Dei de ombros.
A cena continuava a rodar em minha memória fresca como um pião; eu consolando Bruna por uma coisa que eu mesmo iria fazer. E vou mesmo. Estava decidido, não haveria como voltar atrás.
Com algum esforço, as lágrimas dela secaram e acalmaram-se há poucas horas. Isto deu motivo para eu ir embora, já que ela estava em um estado melhor.
Algo que era preciso fazer, e não que eu quisesse.
Queria poder dormir ali com ela, acalmá-la e dizer que estava tudo bem. Dizer e fazer o possível que não fosse uma das últimas vezes que íamos ficar tão próximos, ou sozinhos.
Quando cheguei em casa, ainda tive que suportar alguns minutos de minha mãe falando sem alguma pausa para perguntas ou opiniões. E o mais intrigante é que ela tinha total razão.
Disse que não é a primeira vez que penso em mim, mas entendia meu sofrimento. Que mãe não entenderia.
Tagarelou que, mesmo eu não percebendo, fui egoísta o tempo todo. Agia muitas vezes, como nos nossos dois beijos enlouquecedores, sem pensar direito, colocando minha necessidade de cura em primeiro lugar. A cura que eu precisava para o amor que eu carregava nas costas e no coração, durante toda minha vida.
A paixão por minha melhor amiga virara obsessão; disso eu já tinha conhecimento o suficiente, mas também chegou a ultrapassar o senso de amizade.
Estávamos na quinta-feira. Eu teria apenas amanhã para me "despedir" de Bruna, no sábado, quando Mariana chegasse de viagem, eu a pediria em namoro.
Levantei a cabeça. A tontura passara, apenas precisei me acostumar com a claridade. Escovei os dentes, e desmoronei na cama.
Cansado demais para sonhar, dormi rápido, sem nenhuma interrupção.
Despertei assim que o relógio marcou 6:14h. Acordei disposto, renovado, uma coisa difícil de se ver comigo. Mastiguei meu café-da-manhã indiferentemente, pensativo. Aproveitei que estava com tempo e tomei uma ducha, escovando os dentes no banho. Depois, peguei minha mochila e saí para o frescor da manhã.
Era o único período do dia que eu gostava, além da madrugada. No verão, eram as únicas horas em que eu podia andar na rua sem transpirar, ou até mesmo sem desejar uma piscina. Nas madrugadas quietas e levemente frias, principalmente nas esperadas férias, eu passava acordado na frente do notebook, sempre com a porta ou a janela aberta para o mundo. O vento circulava por meu quarto, e eu acompanhava as estrelas sumirem conforme clareava o céu.
Enquanto andava tranqüilo, a brisa leve levou embora meus pensamentos sobre o que faria naquele dia e no dia seguinte, balançando de leve meu cabelo molhado. O pêlo de meus braços se enriçava conforme a brisa aumentava, e sorri de leve por estar com camiseta, e não regata.
Na terceira quadra, encontrei com Bruna, como todos os dias.
— Bom dia - cumprimentei, e a recebi em meus braços um pouco frios. Ela vestia uma calça jeans branca e apertada, calçava um par de All Star preto e uma camisa listrada de manga curta e gola.
Tentei não olhar seu decote em U.
— Oi - e me beijou no rosto, retribuindo meu abraço. Mas não era o abraço que eu sempre tinha nas manhãs, e sim um abraço desconhecido. Sem vida.
Caminhamos em silêncio pelas próximas duas quadras. Silêncio terrível aquele, pouco comum nas primeiras horas do dia. É certo que ela nunca estava cem porcento acordada, e não precisava estar só porque eu estava. O barulho das folhas das árvores se debatendo eram, ao mesmo tempo, intimidador e reconfortante. Preenchiam o silêncio, mas diziam que havia silêncio demais para nossas vozes.
— Como você está? - perguntei de repente, chutando uma pequena pedra branca no chão. Minha voz era terrivelmente revelante, o guinchar de meu tênis na calçada molhada era irritante.
— Melhor - respondeu, hesitante.
Eu não ouviria aquela doce voz com tanta freqüência agora. Repeti várias vezes para mim mesmo, em mente.
— Que horas ela chega? - indagou, engolindo em seco. A dor era tanta em sua voz, que pressenti que choraria novamente.
Passei o braço por sua cintura.
— Dez da manhã.
Fitei o enorme prédio, agora próximo e muito visível. Uma pequena aglomeração movimentava-se na calçada, um tanto rotineiro aquilo.
Parei de andar, e avancei sobre Bruna, fazendo-a encostar no muro de uma casa. Coloquei os braços à sua volta, formando uma gaiola.
— Mas isto não importa agora, entendeu? - fiz a voz mais doce que pude. A mais convincente também, para ela e para mim.
— Sim - murmurou ela, deixando escapar uma lágrima. Sequei-a com o dedo, selando sua testa com meus lábios.
— Se você chorar, vou embora mesmo - falei em tom sério, enquanto virava meu corpo para o lado contrário, de brincadeira.
— Não - protestou, agarrando com força meu braço. Assenti, rindo. Ela não riu.
Continuei a caminhar para a escola.
— Parece até que vou morrer - brinquei novamente, mas só consegui arrancar um sorriso fraco.
Estava chegando semana de provas, para depois as tão esperadas férias. Terminando as tarefas, Bruna apanhava as apostilas e aprofundava os olhos nas letras monótonas. Sempre fora inteligente, a melhor da turma. Não havia necessidade de estudar.
Mas acompanhei seu ritmo, pensando que depois não haveria porque de reler a matéria nas vésperas das provas.
Quis conversar, mas ela não mostrou estar disposta. Cada comentário meu, ela murmurava algo insignificante. Cada pergunta, uma resposta monossilábica.
Decidi que não me incomodava mais a presença dos demais ali, à toa, com um professor fitando, entretido, às custas dos próprios alunos.
— Pare de me ignorar - murmurei com decisão, enquanto puxava sua mão para a minha, arracando-a do livro.
— Não estou te ignorando - segredou, fria e inexpressiva. Mentia bem, por isso eu sabia que aquilo não era mentira, apenas se fazia de difícil. Era simplesmente ridículo.
— Escute - pedi, paciente - Quer dormir em casa hoje?
Pensou. Fechou o livro.
— Está certo - concordou, hesitante. Nunca pensei que fosse tão fácil convencê-la.
Talvez os doze anos de conhecimento ajudassem.
— Vou sair depois da aula - falei, enquanto me virava de lado, encostando na parede - Depois, vou te buscar.
Contemplou meu rosto, como se esperasse afã por uma resposta.
— Vou comprar as alianças - revelei, temendo por sua reação. Olhei fixamente através do prata inebriante e profundo de seus olhos, a pupila retraída pelas grossas faixas de luz que atravessavam a janela ampla da sala. Aparentavam incerteza, e acima de tudo, dor.
A dor que eu não poderia mais curar.
E não respondeu.
De quinta-feira tínhamos uma aula a menos para assistir. Meu relógio de pulso marcava 11:32h quando saí da escola, após conversar com Pedro e algumas outras pessoas, algo que era habitual. Voltei para casa, peguei a bicicleta e fui para o centro, onde havia uma joalheria.
O centro não era longe. Algumas quadras, mas debaixo do sol infernal, não era convidativo. Queria comer algo para aplacar a fome, mas almoçaria ao lado de Bruna, em casa, no sossego e frescor dos cômodos grandes do meu lar.
Entrei na joalheria, e logo pedi. Uma tamanho 20, a outra 18.
Bruna seria tamanho 17, com certeza. Seus incríveis dedos finos eram um tanto macios quanto frágeis, e ágeis.
Dissipei Bruna de minha mente, mandando gravar nossos nomes nos anéis. Estava disposto à pagar, dinheiro nunca fora problema. Agradeci minha mãe mentalmente, enquanto observava casualmente os diamantes chamativos, na vitrine de cima. Experimentei a argola prateada, servia perfeitamente. Mandei colocá-las no porta-anel azul-marinho, entreguei uma nota verde e fui embora.
Guardei o embrulho em meu bolso mais fechado, pedalando agora para casa de Bruna. Missão cumprida.
Apareci na porta de seu apartamento, transpirando levemente, e com algo em meu bolso que parecia pesar toneladas. Ignorei, ao vê-la. Era tão extraodinário o modo como eu conseguia maltratá-la, como eu poderia ser tão áspero com ela. Chegava a ser desumano, ser ríspido com alguém tão belo interiormente e exteriormente, que ontem mesmo, parecia estar murcho, afogado em poças de água salgada.
Ela carregava uma pequena mochila escura, havia trocado de roupa. Estava perfumada, o rosto cintilante e glorioso. Sorriu ao me ver.
Pedalamos, como era um costume rotineiro no verão e na primavera, para minha casa. Meu devaneio continuava, assim como nós, a traçar seu caminho sem parar, sem se cansar.
— Cadê Mike? - interrompeu ela, o silêncio que durou todo o percurso, entrando em casa. Chamei pelo meu labrador, e ele veio, o rabo agitando-se veloz. Lambeu-nos com vontade e estava indeciso, não sabia para quem dava atenção. Decidiu perder seu fôlego com sua eterna "namorada", já que eu estava considerando a pequena mochila de Bruna, que levava para meu quarto, e não ele.
Na solidão parcial de meu quarto, eu vasculhava a segunda gaveta da escrivaninha, que guardavam DVDs. Selecionei alguns, logo mais colocando-os perto da TV. Pela primeira vez, depois de tantos anos convivendo com ela, não sabia o que fazer.
— Bruna - chamei.
Ouvi seus passos se aproximando enquanto eu buscara pelo meu calção de banho no guarda-roupa.
— Pode se trocar - afirmei, agarrando o calção branco.
Ela assentiu, pegando sua mochila e indo até o banheiro.


— Ahh. - suspirei satisfeito do almoço, enquanto me encostava na beira da piscina, de olhos fechados. Bruna divertia-se, tentando boiar sobre a água, sentada, me fitando intensamente.
— Você come tanto e não engorda - observou ela, olhando minha barriga e sorrindo. Envergonhado, endireitei-me, afundando mais na água. Minha barriga não era lá tão vergonhosa, até porque, sem ser modesto, eu tinha até alguns músculos visíveis. Mas era estranho ser admirado por alguém que não fosse você mesmo, ou sua mãe. Soltou uma risada ao ver que eu estava corando, e nadou por debaixo d'água até o outro lado. Pegou o controle remoto, ligou o aparelho de som que ficava ao lado da piscina.
Sorri ao ouvir as primeiras vozes da música.
I dreamed I was missing, you were so scared? - sussurrava em melodia, e nadava despreocupada. Aumentava o volume de sua voz conforme passava a música, sempre me impressionando com seu maravilhoso dom com a voz. Chegava a humilhar o cantor famoso.
Relaxei novamente.
So if you ask me then I want you to know - cantamos em coro, minha voz quebrando a harmonia que ela tinha com a voz do cantor. Calei enquanto ouvia ela cantando o refrão, então bebi meu refresco.
Aproximou-se.
— Sabe - começou, dando um ar repreensivamente indiferente - andei pensando melhor, enquanto você ia no centro.
— O quê? - perguntei, também tentando me passar por descontraído.
— Acho que não vai ser tão ruim assim.
Pisquei.
— Você sabe, namorar com ela - estimulou.
Elevei uma sobrancelha.
— Como chegou nessa conclusão? - indaguei, curioso.
Ela se afastou, nadando.
— Pensei bem... isto pode ser bom pra você. Não que, no começo, eu tenha pensado que você não quisesse. Aliás, não havia pensando em nada além de mim mesma, no começo.
Silenciei. Linkin Park na caixa de som não estava ajudando com meus raciocínios.
— É claro que eu ainda... não acredito que não vou mais ter você todos os dias comigo, mas aprendi a aceitar que você não é propriedade minha.
"Eu seria, se você quisesse", pensei. Dei uma risada totalmente sem divertimento, tentando fazer como se fosse por suas palavras tão... formais.
— E que você pode namorar quem você quiser - disse, hesitante.
— Você fala como se ela fosse algo sem importância alguma. - soltei, sem pensar antes. Mas sabia que, cordialmente, ela era sim, algo sem importância, para minha história com Bruna.
Ela virou de repente, e me encarou com demasiada dor nos olhos.
— Está bem, não vamos começar uma briga por causa disso - interrompi imediatamente. Não convidei ela pra discutir comigo. - Que bom você entender isso! - falei, sorrindo.
Ela deu de ombros, ainda muito distante de mim.
— Desculpa? - estendi os braços em sua direção, unindo as sobrancelhas, uma voz melosa. Ela me fitou, com ressentimento, e nadou até mim.
No entanto, quando chegou perto, mergulhou o corpo para baixo d'água, e me puxou pelos tornozelos. Afundei, sem força nenhuma, engolindo água.
Voltei para a superfície, engasgado.
— Bobão - riu, se afastando.
Quando consegui respirar normalmente, lancei sobre ela um olhar malicioso, e ela nadou até a outra ponta. Nadei por baixo para ganhar tempo até ela, mas foi inútil. Quando olhei, ela estava fora da piscina, correndo para o jardim dos fundos.
Segui seus passos rapidamente, umedecendo todo o chão, quase escorregando no degrau para fora. Ela corria, balançando os cabelos molhados, dando uma volta em torno da casa. Depois, voou para dentro dela, sempre com sua risada formando harmonia com a minha. Uma paz que eu não queria abandonar cedo, principalmente quando o relógio do dia seguinte apitasse 10h.
A hora em que eu teria que ir no aeroporto, para ver com quem eu iria passar o resto de alguns meses.
Ela já ia subir para o segundo andar, mas então eu consegui agarrar sua perna, que fez ela cair sobre os degraus.
— Droga! - gritou, fingindo um desesperamento, enquanto eu lhe fazia cócegas. Não simples cócegas, mas quase beliscões.
Ela não sabia se ria ou se implorava para eu parar, mas continuava se contorcendo, tentando agarrar meus braços.
— Repete comigo - falei, enquanto ela ria.
— Não! - gritou novamente.
— Repete - pronunciei sílaba por sílaba, fingindo autoridade.
Mas ela conseguiu escapar, e se jogou na piscina, por ver que era a única saída.
Mergulhei logo em seguida, gargalhando alto.
— Não! - falou alto, quando me viu quase próximo ao seu corpo, de novo. Tentei agarrar seus braços, mas ela afundou, nadando para o outro lado.
— Chega! - pedi, enquanto tentava olhar debaixo d'água para ver se ela não tentaria puxar meus pés novamente, mas ela já estava na superfície.
— Parei. - ela disse, mas ainda sorrindo.
Afundei um pouco.
— Vem cá - sussurrei.
Ela se aproximou, afundando também. Fitou a água.
— Eu te amo - disse, com água na boca, provocando bolhas.
— O quê? - seus olhos fitaram os meus, mas peguei suas mãos e as afudei junto comigo, puxando seu corpo para baixo.
Lá em baixo, era outro mundo. O azul turquesa inundou meus olhos, conspirando contra tudo que já vi. Não que nunca mergulhei em uma piscina, mas não lembrava como era entorpecente esquecer do mundo afora.
Mas ela estava lá, para não me deixar esquecer de nada.
"Eu te amo", mexi meus lábios em forma de cada sílaba, para Bruna. Ela prendia a respiração e balançava a cabeça negativamente, com uma expressão engraçada, e quase pude ler seus pensamentos. "Bobão."
Fui à tona, puxando ela também.
— Agora entendeu? - encarei seus olhos vívidos, que pulsavam de vida. Ela assentiu, abrindo um sorriso maravilhoso. Selou minha bochecha, me abraçando. Pousou a cabeça em meu peito.
Suspirou.
— Por incrível que pareça, eu também.
Absorvi as palavras, acariciando seu cabelo molhado.


— Por que ele é tão lindo? - perguntou Bruna, enquanto recolhia com a mão um punhado de pipoca.
— Eca - emiti nojo, enquanto bebia o refrigerante - prefiro a Bellatrix.
— Eca digo eu! - disse alto, enquanto passava uma cena de luta com magia na tela da TV.
Só consegui rir, procurando uma boa resposta.
Lá fora, o sol começava a sumir pelo horizonte, pouco a pouco. As faixas de luz que sobressaíam das nuvens atravessavam o vidro da janela da sala de estar, em direção à parede diagonal que ficava na nossa frente. Eu estava na horizontal, com a cabeça no colo de Bruna, sobre alguns lençóis. Assistíamos Harry Potter e a Ordem da Fênix, e já estávamos na cena quase final.
Avada Kevadra! - gritou a minha personagem preferida da série, enquanto magia de cor verde fluorescente saía de sua varinha torta, em direção ao seu primo, Sirius Black.
— Você viu? Ela matou Sirius Black! Ela matou o próprio primo! E como você pode gostar dela? - questionou Bruna, transpirando suas habilidades teatrais, como se estivesse mesmo indignada com tamanha ficção.
— Como se você nunca tivesse visto esse filme antes - ri, mastigando pipoca.
— Mesmo assim, coitado do Harry.
Achei tão medíocre discutir uma série que já quase não havia mais graça, que ignorei.
Quando os créditos do filme começaram a passar, espreguicei-me sobre seu colo, enquanto observava ela repetir meus gestos. Cutuquei sua barriga nua, o que fez ela contrair-se, rindo. Levantei-me e retirei o DVD, recolhendo os lençóis sobre o sofá, dobrando-os. Bruna virou-se para a janela, e fitou o pôr-do-sol, que de imediato, fez ela colocar um braço contra a luz, pela tamanha claridade.
— São 18:32h. Odeio o horário de verão - falei, enquanto empilhava os lençóis no pufe branco. Não havia mais noção do tempo nesta época, era como se estivéssemos nas 4 da tarde.
— Queria ver de perto - ela disse, apoiando a cabeça em seus braços, sobre o encosto do sofá.
— Vamos lá fora.
Levei-a até minha varanda, onde era tão mais visível e quase palpável aquele deslumbrante fenômeno da natureza.
Lá, os raios de sol transformavam-se em ondas de calor constante, que aqueciam o vento trazido pelas primeiras horas da noite. Faixas de cores diferentes estampavam-se no céu, variadas entre o laranja forte e o azul marinho. Tentei enxergar do outro lado, e só consegui avistar um crepúsculo que consumia o clarão vindo do horizonte. A fascinante esfera quase branca escondia-se lentamente sobre as casas e os prédios, encantando Bruna de uma forma extasiante, que fixava seu olhar somente na claridade vinda da esfera.
Ela sentou sobre a rede de algodão que agitava-se com seu peso, e fiz o mesmo.
Parecia que estava me ignorando, e estava, certamente. Eu examinava seus olhos, tão tentadoramente ofuscantes, vivos, como se pudessem falar por si, sós. Um prata que acabara de ser polido cansativamente, um cinza tão claro que quase seria confundido com a parte alva de seus olhos, se não fosse pelo brilho e os pequenos traços azuis neles contido. Olhos de uma felina, com a pupila totalmente redonda e negra. Expressavam harmonia e deslumbramento, agora que seu corpo relaxara.
Um outro mundo, fitar seus olhos. Como em baixo d'água.
Talvez não havia tantos motivos para olhar tão intensamente aquele fenômeno para mim como havia para ela, então deitei novamente sobre seu corpo. Admirei, com uma visão de baixo como era seu corpo sobre a luz solar.
Era ainda mais encantador.
Era quase involuntário dizer "Acorde", mas não quis interromper aquele momento único, com ela tão distraída e comigo querendo desesperadamente saber o que caminhava por sua mente. Segurei-me, tentando me distrair olhando, de vez em quando, as listras da rede.
— É tão... estranho - começou, a voz baixa, quase em um sopro.
— O quê? - olhei-a, sua expressão estava incrivelmente paralisada, sem olhar para mim.
— Saber que... vou ter que me acostumar a conviver mais com Lílite, ou Paula.
— Ah, Bruna... não vamos começar a...
— Deixa eu falar - interrompeu, olhando para as próprias pernas cobertas por um curto shorts.
Depois, voltou com os olhos para a claridade que se dissipava vagarosamente.
— Eu também queria encontrar uma pessoa - sussurrou, com uma leve camada avermelhada preenchendo suas bochechas.
— Não! - soltei sem pensar, levantando-me. Que droga era agir por impulso.
— Por que não? - perguntou, virando o rosto para me olhar pela primeira vez.
— Porque... porque... - lutei com alguma resposta coerente, mas nenhuma se encaixava. Todas que pensei faziam parte da mais pura verdade, nenhuma seria favorável. Ela balançou a cabeça.
— Tinha certeza que você sabia que eu também tenho todo o direito de namorar alguém - continuou, com desprezo na voz.
Desejei morrer.
— Eu sei disso. Apenas... - hesitei, achando melhor não falar absolutamente nada. - Desculpe.
— Tudo bem - mas suas sobrancelhas se uniram, formando uma expressão de perplexidade.
O tom de azul agora estava mais escuro e cobria mais as cores claras; uma leve brisa começava a circular pelo ambiente. As folhas balançavam, fazendo barulho.
— Não que não goste de estar com elas. Elas são minhas melhores amigas, muito pelo contrário. - hesitou, engolindo em seco. - Gosto tanto de estar com elas... quase como gosto de estar com você. - seus olhos me encararam, o rosto queimando ainda mais por um tom de sangue.
Foi assim por um bom tempo. Ficamos na pausa entre a troca de olhares, o rosto corando de vez em quando. Por dezenas de minutos, o silêncio permaneceu ali, calando nossas vozes, deixando que apenas o vento e as folhas das copas das árvores falassem; o calor do sol já era inútil. Vi o pêlo dos braços de Bruna se enriçarem, mas que não provocaram nenhuma mudança em sua posição, ela aparentava uma morta-viva. O que era vivo em seu corpo, e único, era o par de olhos prateados.
— Quero que você seja feliz com ela - murmurou, a voz menos dolorosa. - Sinceramente.
— Obrigado - respondi, sem vontade. Era claro como água que ela não queria desejar isso, e para isso estava tão silenciosa. Estava criando coragem para dizer aquilo, lutando com as palavras.
O sol já desaparecera. Não havia mais luz ali, a não ser da varanda. Uma mísera lâmpada elétrica, que não produzia calor. Porque Bruna estava totalmente fria.
Eu também.
— Quer entrar? - perguntei, com receio. Era como mexer com uma ferida ainda aberta, a carne vermelha ainda aparecendo.
— Fique aqui comigo - pediu. Sua voz agora recuperou quase todo o tom doce que possuía sempre. Aparentava de uma moça que pedia humildemente que eu a ajudasse em algo importante, não uma garota que estava sofrendo pela perda de um amigo.
Repousei as costas em um lado da rede, e a puxei com cuidado para meu colo. Ela cedeu aos poucos, com algumas poucas gotas largas de água saindo de seus olhos. Não tinha expressão de dor, ela não emitia sons de choro. Mas chorava, e seu coração doía, pedia pela ajuda do meu, quase curado.
Ou quase ferido.
— Não chore - sussurrei em sua orelha, encostando sua cabeça em meu ombro. Um grilo começou sua sinfonia, e isto me acalmou. Enrolei uma mecha de seu cabelo castanho em meu dedo, brinquei levemente com ele.
— Por que, Guilherme? - balbuciava em agonia - Por quê? Por que eu sei que não vou me acostumar a te perder? - e meu anjo da guarda não cessava às lágrimas, simplesmente escondia-se em meu peito, o rosto distorcindo em melancolia.
— Shhh. - eu murmurava, secando todas as lágrimas que podia, não acreditando que eu era capaz de fazer uma coisa que só a magoaria.
E novamente, o anjo estava murcho, inseguro, indefeso, afogando-se no próprio choro que não a abandonava, que eu não conseguia fazer abandoná-la. O anjo sem asas chorava, chorava com toda a vontade que possuía, toda a dor transparecendo no momento.
Nunca pensei que a situação poderia se reverter; no entanto, lá estava ela, passando ao contrário.
O anjo chorou, esperneou, me machucou. Apertei sua cabeça contra meu peito, querendo transmitir segurança, mas nada ali havia mais sentido para ela, nada havia de ser feito. Nada mais era possível para consertar.
Esperei que a água evaporasse, e o anjo finalmente parasse com a crise. Sim, porque aquilo era apenas uma crise, haveria como passar.
Pelo menos era o que eu pensava, querendo me enganar.
Não pronunciei nenhuma palavra com o receio de falar alguma besteira, então calei. Quando o anjo finalmente cedeu, rendendo-se ao cansaço, ajudei-lhe a levantar.
Bruna esfregou o rosto com as costas da mão, apanhou sua mochila e foi ao banheiro. Iria se lavar, talvez até colocar os pensamentos em ordem.
Desprezivelmente, me deixou sozinho na nostalgia de meu quarto, onde, ao som de Rufus Wainwright, as primeiras gotas salgadas começaram a rolar por meu rosto, manchando o lençol de minha cama. Pouco a pouco, foram umedecendo minhas bochechas, dando um tom acinzentado ao lençol branco. Eu sentava com as pernas em X sobre a cama, fitando apenas as lágrimas que no lençol se dissipavam.
Quando finalmente consegui enxugar todas, Bruna saiu do banheiro. Deitou em minha cama, e fui me lavar também.
A água em jato da ducha relaxou, como todas as vezes, meus músculos. Funcionava como um anestesiante, e quando percebi, estava há quase quarenta minutos de baixo do chuveiro.
Girei a torneira, passei a toalha por meu corpo. Vesti uma camiseta limpa, uma bermuda bege.
— Está com sono? - Bruna estava recostada em minha cama, o edredom escuro sobre sua regata clara. Observava o porta-retrato que situava-se geralmente em meu criado-mudo, mas agora ela apertava-o, apoiando por cima das pernas. O rosto era sóbrio, mas eu quase pude enxergar que meu lençol tinha ficado mais cinza.
Fui para o seu lado debaixo do edredom, e fitei a fotografia onde eu beijava sua bochecha. Rapidamente, um flashback ocorreu. Era outono do ano passado, as folhas douradas e alaranjadas precipitavam, inúmeras, sobre nosso fundo. Ela, com um cachecol xadrez e eu, com a gola de minha camisa toda amassada, com meus braços a agarrando por trás. Ela sorria, tão sinceramente.
Tempos que não voltam mais.
Beijei seu rosto, provoquei. Afastei seu cabelo da orelha, mordi o lóbulo, mas como um gesto de um amigo que queria apenas provocar risadas, não como um sedutor barato.
— Prometo que essa cena poderá se repetir muitas vezes - murmurei contra os fios curtos de seu cabelo, que molhavam o travesseiro.
Deitei meu corpo, ela também. Virei-me para ela, fiquei acariciando seu rosto. Respirei seu cheiro, o cheiro que lembrava o conforto, uma amiga velha, uma boa vibração.
O prata de seus olhos era ofuscante, me contemplava tão encantadoramente, mas eu não tinha tanto interesse para ela.
— Eu te amo - ela segredou, fechando os olhos.




Eu também.


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