Capítulo 9 - Frio verão


Desci as escadas com uma mochila cheia de roupas nas costas. Thiago me esperava do lado de fora em seu Vectra prata. Sentei ao seu lado e ele beijou minha testa, preparando-se para ligar o carro e dirigir durante alguns minutos. Sentia-me ansiosa. Não era de meu costume ir a festas. Ainda mais uma que seja preciso trocar de vestes constantemente. Eu veria a ruiva e sua parceira, era o que mais importava. Estava confusa, perdida em meus pensamentos. Sabia que algo crescia em meu peito, algo que eu não gostava, algo que me incomodava mais do que o simples fato de estar viva.
Antes mesmo de sairmos da cidade, paramos em uma pequena loja de conveniência. No interior havia poucas pessoas. Dentre elas, o menino que aparentava ter minha idade tomava conta do caixa. Ele cumprimentou Thiago, com uma voz incomodamente monótona. Meu companheiro caminhou em direção ao corredor do fundo, eu o segui. Compramos apenas o necessário, o óbvio. O que dois adolescentes iriam comprar antes de ir a uma festa que duraria dois dias de puro álcool e atos inconsequentes?
Saímos. Thiago segurava a sacola com alguns preservativos enquanto voltávamos para o carro.


A hospedagem era enorme. Deveria ser umas sete ou oito vezes maior que a casa de Thiago. Estacionamos em meio aos outros milhares de carros enfileirados.
Pude ver alguns garotos correndo com roupas íntimas de forma ridícula.
— Você já fez isso? — apontei para o grupo.
— Mais vezes do que você imagina.
Eu o encarei e ele me olhou, confuso.
— Na verdade, pensei que você ia dizer “não”. — soltei um riso fraco — Não consigo imaginar você fazendo uma coisa dessas.
Ele também riu. Andamos até a entrada da festa. Era pior do que eu imaginava: um salão barulhento e movimentado, cheio de garotos bêbados gritando e dançando com garotas mais bêbadas ainda. Seria escuro, se não fosse pelas luzes de boate, que piscavam continuamente enquanto os corpos se movimentavam de forma vergonhosa. No centro, um imenso balcão, onde vários homens serviam bebidas para os adolescentes, sem se importar com as idades. Casais preenchiam as paredes, todos se beijando compulsivamente. Mais no fundo havia mesas e Thiago me levou até uma.
Sentamos e o garoto pôs sua mão sobre a minha. Falou algo que não pude ouvir, devido ao som alto. Deduzi que iria ao banheiro, pois ele se levantou sem dizer mais nada e se misturou com os outros adolescentes. Tentei me concentrar em enxergar aonde ele iria, mas minha atenção foi tomada pela garota de cabelos azuis, que apareceu na minha frente repentinamente. Seus lábios se aproximaram do meu ouvido.
— 57. — sua voz era rouca — Use o quarto 57.
— Por quê?
— Você não vai querer ter relações com seu namorado em público, ou vai?
— Não vou ter nada em lugar algum.
— Todos dizem isso. — riu consigo mesma. — Boa sorte.
Encarei-a. Seu rosto se virou para o lado e sorriu, segui o seu olhar. Ela fitava o casal de garotas que se beijavam. A ruiva tinha em mãos um enorme copo de bebida. Senti enjôo.
Abaixei a cabeça, repousando-a sobre a mesa. Dor, ódio, tristeza e felicidade, era o que eu sentia. Tudo de uma vez só, causando-me uma grande vontade de me tornar apenas mais uma garotinha besta e beber. Beber muito, beber até esquecer que estava viva, que estava sofrendo.
Thiago voltou, sentando-se ao meu lado novamente.
— Traga-me bebida.
Ele me fitou.
— Por favor!
— Você é nova. — não era possível ver seus olhos, mas pude perceber que estavam preocupados.
— E você disse que nós precisávamos nos divertir. — abaixei minha cabeça novamente. — Só estou tentando fazer isso.
— Olha, não...
— Tudo bem, eu pego. — levantei-me.
O garoto me puxou de volta para si.
— Certo, certo. Eu vou.
Sorri.
Thiago se misturou com a multidão novamente, mas desta vez estava indo em direção ao balcão onde pegaria as bebidas. Voltei a espreitar as duas garotas e Lise não parecia estar bem. Com a cabeça jogada sobre a mesa e boca se mexendo como se resmungasse algo, foi levantada pela loira, que a beijou sem ao menos se importar com o que ela dizia. Fechei os olhos, tentando não me ferir. Não entendia como a ruiva conseguia gostar de uma garota que a tratava daquele jeito.
O garoto moreno voltou e trazia consigo duas garrafas de álcool. Colocou-as sobre a mesa. Encarei as bebidas por alguns instantes. Nunca havia sentido tanta vontade de beber, era como se estivesse caindo do nível “depressivo” para o “depressivo e desesperado”, descontando a dor e a melancolia em minha própria vida. Thiago pegou uma e tomou o primeiro gole, apontando seu dedo para a outra. Eu a peguei e levei até a boca, virando-a sem pressa.
Senti uma grande sensação de leveza, apesar da grande irritação em minha garganta. Era bom, e ao mesmo tempo, era estranho. Comecei a beber sem pensar em consequências, esquecendo dos problemas que me cercavam. Goles e mais goles faziam a primeira garrafa ficar menos pesada. O moreno acabou a sua e se levantou para pegar mais. Meu olhar insistia em se fixar no casal de garotas. A raiva começava a aumentar, fazendo com que eu ingerisse o líquido com urgência.
O tempo passava e eu permanecia observando as duas, sem se quer me importar em ser discreta. Continuava bebendo desesperadamente, perdendo toda a noção do que estava fazendo. Já estava na segunda garrafa quando o casal se levantou. Não sabia aonde iriam, mas não importava mais. Puxei Thiago para beijá-lo de forma asquerosa. Subi em cima de seu corpo em uma falha tentativa de seduzi-lo e beijei seu pescoço, enquanto minha mão começava a percorrer por seu corpo. Ele colocou mais uma vez a garrafa em sua boca e tirou minhas mãos de si, encarando-me de forma estranha. Sentei novamente em meu lugar e bebi mais alguns goles, voltando a beijá-lo logo em seguida.
Eu estava excitada, não sabia o motivo, mas estava. As luzes que acendiam e desligavam rapidamente passaram a ser apenas mais uma forma de incentivo para continuar o beijando. Abracei-o. Sua língua explorava a minha boca, roubando as últimas gotas de álcool que havia sobrado de meu último gole. Mais uma vez, lancei-me para cima de seu corpo, e dessa vez ele pareceu gostar. Sua mão agarrou minha cintura por dentro da blusa e o garoto se levantou. Puxou-me para o meio da multidão e me guiou até as escadas. Subimos.
— Escolha um quarto. — era possível ver seu olhar excitado por causa da claridade do corredor.
Lembrei da garota de lentes azuis.
— Quarto 57.
O garoto me puxou novamente e me levou até a porta de número 57. Antes que pudéssemos entrar, Thiago me prendeu contra a parede. Seus lábios beijaram minha garganta e desceram. Seus dedos frios desabotoaram minha blusa.
— Lá dentro. — retirei suas mãos de meu corpo.
Ele sorriu maliciosamente. Minha mão procurou a maçaneta da porta, mas Thiago a encontrou primeiro. Abriu a porta rapidamente e houve um susto.
As duas garotas estavam de roupas íntimas na cama, uma sobre a outra, com apenas um lençol branco as cobrindo da cintura para baixo. A loira se retirou de cima da ruiva e puxou o pano junto consigo, deixando Lise totalmente descoberta. Sua face estava irritada, e piorou ainda mais quando Lise se virou para o lado e vomitou. Fiquei entorpecida diante do que acontecia. Lara procurou suas roupas no chão e as vestiu rapidamente, retirando-se do quarto com nojo.
Lágrimas começaram a escorrer pelo rosto pálido da ruiva e Thiago foi ajudá-la. Meu peito começou a doer.
— Sophie, encontre as roupas dela. — disse, levando a garota ao banheiro.
Entrei no quarto e procurei. Estavam jogadas perto de uma cômoda de madeira ao lado do armário. Entreguei-as a Thiago e saí da hospedagem o mais rápido possível. Sentei em um tronco de madeira perto do lago. Já estava escurecendo, o tempo havia passado rápido demais e eu estava perdida em pensamentos. Essa não era a vida que eu queria ter. Queria poder viver calmamente ao lado de Bianca no outono, sentada ao seu lado em meu refúgio, sentindo a paz que dos dois causavam em mim. Só que eu sabia que era algo impossível de acontecer, que minha felicidade nunca voltaria. Por isso eu estava ali, onde jamais deveria estar, onde Bianca jamais permitiria que eu fosse. E não importava que tipo de amor ela sentia por mim, ela nunca me machucou da forma que os outros me machucavam naquele momento.
Coloquei a mão sobre o peito. Havia passado tanto tempo longe daquelas lembranças que tinha esquecido o quanto machucavam. As lágrimas desceram. Era doloroso. Talvez aquela dor que estava sentindo não fosse enjôo, e sim uma ferida incurável que estava se manifestando.
Thiago se sentou ao meu lado e colocou sua mão em meu ombro como costumava fazer todas as vezes em que queria me consolar.
— Ela está bem, Mansour. Eu a ajudei a vestir suas roupas e coloquei-a em um quarto limpo. — ele me abraçou e beijou o topo de minha cabeça — Pare de chorar.
— Não é isso. — tirei meu corpo de seus braços — Não dá... Não quero mais fazer isso. Não sei nem por que comecei. Não é a minha vida, eu nunca fui assim.
— Você faz isso porque gosta dela.
— Eu só gosto de uma pessoa, e mesmo que ela não esteja mais aqui, vou sempre gostar dela.
— Não seja tão fraca. Não desista tão fácil da sua felicidade.
— Não estou sendo fraca. Seria fraca se corresse atrás de alguém que nunca vai me querer, como você faz. — levantei-me.
— Isso não é muito diferente do que você faz, Sophie.
Silêncio.
— Você é quem sabe. Se quiser passar o resto de sua vida assim, o problema é seu. — suspirou — Só que não posso te deixar sozinha aqui. Deixe que eu te leve de volta para casa.
— Não quero voltar.
Ele me encarou com expressão confusa. Minhas contradições deixavam as pessoas assim.
— Só quero que me prometa que não iremos mais enganar ninguém.
Thiago fechou os olhos e concordou com a cabeça.


Eu poderia fazer um vestido,
Um roupão para um príncipe.
Eu poderia vestir um continente,
Mas eu não posso costurar uma ferida.

(Dresden Dolls – Perfect Fit)





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