Capítulo 1 - Névoa


Realmente, o salão de festas do prédio de Marília era amplo e a decoração agradou meus olhos, como ela prometera. Bexigas infladas, brancas e pretas, coladas no teto e amarradas a fitas de cetim prata. Um grande telão irá mostrar uma pequena homenagem criada por seus amigos mais próximos, várias mesas para os convidados – incluindo amigos e sua enorme família.
Haviam alguns amigos de pé, nenhum incrivelmente produzido. Vestindo camisas e calças pretas, como eu. Porém estava apenas adornado com um colar de corrente prata. As meninas, incluindo Marília, estavam do outro lado, e ao contrário de nós, caprichadas e estilosas. Vestidos pretos com brilho, chapéus, meias rasgadas, olhos maquiados exageradamente. Então, avistei Bruna do outro lado do salão, com seu pai ao lado, no mesmo padrão de roupa que meus amigos. Bruna estava perfeita e linda como todas as vezes eu que eu a via. Vestia uma calça jeans casual com botas sem salto, pretas, por cima, colocando em evidência suas coxas grossas. Era uma silhueta esplêndida e provocante na alma de uma garota de doze anos.
Uma regata preta coberta por um espartilho de couro, também preto, emagrecia sua barriga e pronunciava seus generosos seios. Seu cabelo, como sempre, castanho reluzente, brilhante, curto. Nunca mudara o penteado natural. Desejei também que nunca mudasse.
De mãos dadas com seu pai e agarrada ao pequeno pacote preto com fita vermelha, era a menina mais bonita e meiga da festa, cumprimentando todos ali presentes. Mas, para mim, era outra pessoa, quase uma mulher, revelada todas as vezes em que estávamos entre amigos ou sozinhos. A garotinha dos lábios volumosos e olhos cinza-claros idênticos aos da mãe era, para meus amigos e eu, a garota sedutora que tinha o mundo aos seus pés e a pessoa mais amiga que conhecíamos.
Enfim, consegui elogiar minha deusa. Seu sorriso me dominava, me tirava da consciência, entorpecia-me.
Provocava isso tudo, e me deixava mais animado. Fomos para o andar de cima, conhecer o resto do salão, para o jardim, conversamos, corremos, bagunçamos, como verdadeiras crianças entrando na pré-adolescência. Mas eu, particularmente, considerava-me prodígio. Ou com a mentalidade um pouco avançada. E se colocasse esse pensamento em palavras, poderiam me julgar como modesto, uma criança irritante. Por isso, nunca me exibi a ninguém. Eu poderia apresentar isso em desenhos, meu dom natural.
O momento de cantar “parabéns” era horrendo. O salão ficou completamente iluminado por velas negras e vermelhas, o que deixou o ar com um clima de castelo de vampiros. O coro que ali se formou cantou em um volume animado e alto, ensurdecedor. Como tradição nos aniversários, houve o “com quem será”, que intimidou Marília e Thiago, de sua classe. Como eu gostaria que no lugar deles estivessem Bruna e eu. Quem sabe, daqui a alguns anos.
Dedos leves e frios tocaram meu ombro, interrompendo meus pensamentos. “Se for comer bolo, pegue logo e vá para o jardim”, disse uma voz feminina. Virei minha cabeça à direção da voz, era Larissa, da sétima série. Assenti, confuso. “Avise a Bruna, Lílite, Mariana e o Júnior, tá? Vamos fazer algo mais divertido”, explicou ela. Algo mais divertido, ótimo. Algo para inovar nosso passatempo em festas.
Ao terminarem de cantar, avisei a todos que Larissa pedira e fui para fora. Nunca gostei de bolos em aniversário. Deixavam-me nauseado.
No jardim o vento soprava ferozmente, fazendo meus braços implorarem para eu buscar meu casaco. Não. Eu mesmo dizia que frio é um fator psicológico, e todas as vezes que penso nisto, meu frio se comprime. Mentalizei o que mais me aquecia nos rigorosos invernos desta cidade: o abraço de Bruna. A cada dia que ela contraía seu corpo contra o meu eu podia viajar, me sentir num paraíso individual, como se ela estivesse lá para me proteger. Mas era o contrário. Eu sempre que protegia seu corpo. Nunca o contrário.
Nunca o contrário.
Olhei ao longe, Larissa, Karina, Pedro e Lílite caminhando em minha direção. Acenei, enfim conseguiram confirmar que eu estava aqui. A neblina muito densa da noite deixava o ambiente tenebroso e frio, o que me deu na mente que iríamos contar histórias de terror. Larissa possuía uma luz arredondada em sua mão esquerda. A neblina me deixou irritado, não consegui enxergar direito. Quando ela se aproximou a três passos de mim, consegui ver que era uma lanterna da decoração das mesas, e uma garrafa vazia de vidro em outra mão.
— Vamos jogar verdade ou desafio. — disse Larissa, com sua voz medonha e grave.
Nunca passou pela minha cabeça que jogaríamos esse tipo de jogo. Nunca jogamos, é certo. E essa brincadeira tinha fama por acontecer coisas inusitadas, como beijar pela primeira vez.
Eu não queria beijar aquela noite. Não, não aquela noite. Eu queria estar em um lugar onde só houvesse Bruna e eu, no nosso paraíso particular.
Eu não conseguiria.
Qual seria minha reação se tivesse que beijar Lílite, melhor amiga de Bruna?
Mas, infelizmente, rendi-me às tentações. Eu poderia muito bem beijar Bruna naquela noite.
— Valendo tudo? — perguntei, sabendo que Larissa entenderia meu raciocínio.
— Claro. Não haveria graça. Vamos esperar os outros. — retrucou ela, organizando a roda de pessoas, colocando a garrafa deitada e a lanterna em cima de uma pedra.
Neste mesmo instante, o restante do pessoal chegou. Estranhei o porquê de Bruna ainda não estar lá. Larissa organizou a roda novamente, explicando as regras do jogo para alguns. E quanto mais o tempo passava, mais minha aflição vinha à tona. O que Bruna estava fazendo para demorar?
E então, finalmente, enxerguei uma silhueta inconfundível. Ela caminhava apressadamente, abraçando o próprio corpo, apesar de estar com um casaco preto que aparentava quente. Esperamos ela chegar e Larissa logo despachou a ela: iríamos brincar de verdade ou desafio, com tudo incluso. Ela rapidamente raciocinou e olhou para mim e para Lílite com uma expressão cômica, depois deixou escapar uma gargalhada de cortar meu coração.
Larissa girou a garrafa, enquanto Karina ligava a música de seu celular para “descontrair o ambiente”, disse ela. Uma rádio tocava músicas conhecidas, e então me tranqüilizei, apesar de vários desconhecidos de nossa idade entrarem na brincadeira. Larissa parecia irritada, por ter que organizar a roda todo momento. Enfim, a brincadeira chegou ao início. Com muitos ruídos, eu também comecei a me entreter, com as piadas inúteis que Pedro contava à Thiago. Logo, me vi descontraído e totalmente seguro de mim mesmo. Mal esperava o que estaria por vir.
Entre rodadas de garrafa e gritos de alegria, presenciei de pequenos toques de lábios a grandes beijos de cinemas, desafiados na maioria das vezes por Marília e Karina. Inclusive, Lílite e Pedro, por quem sempre achei que combinassem. Assim como Bruna e eu.
Larissa estava entrando em uma fase depressiva, o garoto por quem ela perdia tempo pensando não estava na brincadeira, estava dentro do salão, conversando com outra garota. Isso me trazia pena, pois se fosse a mesma situação comigo, minha melancolia afetaria até meu estado físico.
Foi quando, para acabar de vez com minha reserva de resistência mental e física, aconteceu.
— Vamos Pedro, gire logo essa porcaria. — Larissa estava impaciente. Achara péssima a sua própria idéia.
— Calma Lari, já vou.
E então meu melhor amigo girou a garrafa.
Uma, duas, três, várias, incontáveis voltas.
E seu movimento me hipnotizava, a garrafa estava lentamente parando.
Resultado: Pedro pergunta para Guilherme.
Tremi meu corpo. Já havia pedido todo o estoque de verdades. Era agora ou nunca. E pelo modo como eu conhecia a personalidade de meu melhor amigo, ia resultar em merda.
Ou não. Minha expressão mudou totalmente ao pensar na outra possibilidade.
Pedro sabia o quanto eu era apaixonado por Bruna. Ele poderia cooperar com isso.
Ah, Pedro, meu irmão de sempre.
— Verdade ou desafio, Guilherme? — Por sua voz, já desconfiei do que faria comigo. Engoli em seco.
- Desafio – disse, hesitante e ofegante.
- Hmmm. — murmurou ele. Seus olhos desviaram-se dos meus, fixaram-se nos de Bruna. Depois, para disfarçar seu riso comprimido, fitou intensamente cada menina ali presente. – Vejamos, senhor Guilherme... que tal, um beijo de língua com a senhorita Bruna?
Neste momento, achei que teria um desmaio. Desmaio mútuo: Bruna e eu. Fizemos a mesma expressão de espanto que provocou gargalhadas em toda a roda. A minha, porém, não foi um tanto forçada como imaginei que teria de ser: as palavras vindas da boca de Pedro soavam muito mais medonhas. Beijo de língua. Rá.
Bruna, porém, pareceu mais aflita do que eu.
— O que? Não! Ficou louco, Pedro?
— Um beijo não mata ninguém.
— Mas o Gui é meu melhor amigo! — péssima idéia de Bruna ter dito isto. Só abriu caminho para as vozes de todos se elevarem à gritos, do gênero “Por isso mesmo! Muito mais fácil!” e “Beija logo, pra perder o ‘BV’!”. Milhares de gritos. Ensurdecedores.
Enquanto todos estavam ocupados tentando convencer Bruna, Pedro puxou meu braço e nos afastou de lá. Em seguida, virou meu corpo à força e murmurou furiosamente:
— Não vai me dizer que o gayzinho amarelou.
— Não amarelei, oras, é ela!
— Meu filho, você poderia estar realizando sua fantasia sexual agora, se não fosse pela sua falta de atitude! — Pedro largou meu braço, com a assustadora força que ele tinha a mais que eu.
— Já te disse milhões de vezes, isso pode estragar nossa amizade.
— E se não estragar? Pra você poder ser feliz, é preciso arriscar. Você quer ou não beijar a Bruna?
— Óbvio que quero.
— Então faça alguma coisa que preste, já te ajudei por hoje. — Pedro estava realmente irritado com minha covardia. Ele sempre tentara ajudar, e quando finalmente conseguiu, eu não poderia estragar tudo.
Caminhamos de volta ao círculo desorganizado, então fitei Bruna, esperando a algazarra se dissipar. Ela, de vez em quando, encontrava meus olhos, mas ainda com a mesma expressão de negação e riso forçado. Após a bagunça acalmar, andei na direção de Bruna e levei-a até onde os olhos dos demais não conseguiam alcançar-nos. A neblina ainda pairava sobre o ambiente, o que, incrivelmente, me ajudou.
Parei diante de outra pedra.
— E aí, o que vai ser?
— Não sei — disse Bruna. Sua voz estava num tom que eu não gostava, que ela só fazia quando estava confusa, e que a resposta parecia óbvia para mim. ‘Não.’
— Como, não sabe? Não liga se eu te beijar ou não?
— Guilherme Medeiros, sabe as conseqüências que possivelmente surgirão após esse beijo?
— Sei. Mas pode ser que elas não venham à tona.
Bruna tornou a pensar. Sua expressão era vazia, fria, mas ainda sim, linda. Reluzente, pálida. Seus lábios carnudos e corados tremiam com a bruma congelante, então, caí em consciência.
— Você está com frio. Está tremendo. — eu disse, esforçando para fazer o tom mais acolhedor que ela gostava. Ou misturar a voz com a de um sedutor, algo parecido. Abracei seu corpo frio e duro, então ela afundou o rosto em meu peito, sem mover suas mãos, cerradas em pedra. Não estava chorando, como fizera em todas as vezes que essa cena se repetia. Seu corpo parecia morto, e eu precisava revivê-lo.
Revivê-lo, para mim.
Levantei seu queixo com o dedo indicador, olhei para seus olhos brilhantes e cinza-claro. Hoje estavam mais azulados, como eu gostava. A luz fraca vinda do salão o deixara assim, somado à luz da névoa.
Uma névoa encantadora, por sinal.
— Isso não vai mudar nada entre nós.
— Promete? — o murmúrio doce de seus lábios trouxe à mim um aroma envolvedor, que me deu mais coragem. Seus olhos hipnotizavam os meus.
— Prometo.
E então, nossos lábios se encontraram.
Os dela, como eu nunca pude sentir, eram macios, aveludados, lisos, cheios. Cheios de tudo que eu queria para mim.
Seus braços longos contornaram meu pescoço, enquanto seus lábios separavam-se, buscando pelos meus. Abracei sua cintura, em um gesto afetivo, não romântico. Prometi a ela e a mim mesmo: isto não iria mudar nada entre nós.
Pude ouvir berros dos mais variados tons do outro lado, formando quase um coro desafinado. Celebravam nosso beijo, como num filme famoso onde os personagens são lerdos e moles, como nós. Mas não pude ouvi-los se aproximando. “Obrigado, Pedro!”, mentalizei.
Agora, eu poderia compartilhar meu mundo perfeito individual com a pessoa que eu mais amava neste mundo.
Pude sentir seus lábios espaçosos tentando levar consigo meu lábio inferior, e deixei.
Agora sua mão fina e macia agarrava-se em minha corrente de prata, sua outra mão desalinhava meu cabelo arrumado. O toque de seus dedos me davam calafrios.
A névoa densa, branca e inacreditavelmente fria em nossa volta fazia parte do meu cenário perfeito e preferido, agora. Agradeci de coração a essa névoa, que entregou a mim de bandeja a coragem que precisava.
Agora, eu podia sentir seu corpo vivo, quente, de minha preferência. Sua língua enroscava na minha de uma forma que não consigo descrever. Ela passeava ousadamente por meus lábios sedentos de sua boca, o meu mais recente objeto de desejo. Seu aroma, misturado ao inebriante congelar da névoa, era um remédio à qualquer doença respiratória a qual eu estava exposto.


Eu poderia até morrer, mas morreria feliz.




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