Capítulo 2 - Apenas amizade


Um traço de luz atravessou o vidro de minha janela, fazendo minhas pálpebras se contraírem de dor. Uma forte dor fez minha garganta falhar e me forçou a pigarrear, o que foi uma péssima idéia. Meus olhos se abriram e a luz era mais forte do que imaginei. Minhas narinas estavam inutilmente buscando por oxigênio, mas nada se passavam por elas. Porém, mais do que isso, estava tentando lembrar meu último sonho. Odiara a maldita luz que o interrompeu.
Caminhei até o banheiro e parei em frente a pia. O espelho sem moldura dizia que minha cara estava horrível. Um monstro. Meus olhos acinzentados estavam inchados, pequenos e avermelhados. Meu nariz, também inchado e avermelhado. Não conseguia fechar a boca, pois estava respirando por ela. Meu cabelo estava pior do que de costume. Seus fios estavam terrivelmente embaraçados e o efeito que ele tem quando acordo não era o mesmo. Eu teria que usar gel. E era ele a arma da minha sedução com as meninas do colégio. Tentei dar uma gargalhada para o espelho, mas só consegui enxergar um sorriso. Uma sensação horrível. Enxagüei meu rosto com água aquecida e enxuguei. Não adiantara nada.
Andei até a despensa, procurando algum xarope para garganta. Testei minha fala, não emiti som algum. Por que eu estava tão ruim assim? O que eu havia feito ontem?
A festa de Marília foi ótima, até brincamos de verdade ou desafio.
A festa de Marília...
Meu sonho!
Lembrei que havia sonhado com o que eu sempre desejei em minha vida. Eu beijava seus lábios doces, e seu corpo era, por um momento, meu. Apesar de não lembrar direito do mesmo, era perfeito, maravilhoso. Eu poderia passar o domingo inteiro relembrando este sonho.
Seus lábios, seu aroma, seu abraço.
Mas, espere. Onde estava minha corrente que prata que usei ontem?

No dia seguinte, eu não havia melhorado nada, praticamente. Meus pigarros arranhavam minha garganta em uma tortura insuportável. Minha voz falhava a ponto de quase não se ouvir um ruído, um chiado. Meu nariz funcionava aos poucos, me obrigando a levar no bolso uma pilha de lenços de papel.
Mas quis ver Bruna e conversar com Pedro, então fui à escola.
Cheguei ao colégio de carro, e ainda pedi para que minha mãe me deixasse na esquina. Além de eu nunca ter vindo de carro à escola, que fica cinco quarteirões de minha casa, eu me sentia um boneco de neve. Estava congelando, e o peso das roupas me fazia sentir obeso. “Devia ter ficado em casa”, pensei. Subi a escadaria de entrada com um esforço exaustivo, perdendo todo meu ar. Parei quando cheguei no topo. Metade do colégio já se encontrava ali, e eu sabia que iria enfrentar coisa muito pior que uma gripe como a minha.
— Guilherme! Conta tudo! — gritou Alan, assim que percebeu a minha presença. Sua voz grossa e intimidadora encolhia meus ombros. — Tentei arrancar da sua namorada, mas não consegui nenhuma informação... a coitada está sem voz.
“Eu também estou”, tentei dizer. Repeti umas três vezes, até ele entender através de leitura labial.
— Caramba, beijaram tanto assim, foi? — disse Giovana, a menina da oitava série. Caramba digo eu. Quem teria sido o inútil que espalhou isso em menos de meia hora?
Avistei Bruna, encostada em seu armário, conversando com Milena. Estava mais agasalhada que eu. Me deu algum remorso, mas passageiro. Eu não queria que ela ficasse tão doente. No domingo, ela me contou pela Internet que tomou vacina para melhorar da gripe. Eu queria poder ouvir sua voz pelo telefone, mas não foi possível.
Oi”, tentei dizer, Ela leu meus lábios e me abraçou, tentando também dizer “oi”, como sempre fazíamos. Hesitei, pois sabia que os outros não teriam a mesma reação de sempre. E, como tudo o que imagino acontece, os gritos e a bagunça de quando nos cumprimentamos chamaram a atenção até das coordenadoras ali presentes. Mandaram fazer silêncio, então tentei conversar com Bruna.
— Ah — falhou a voz dela, enquanto abria sua mochila cinza e preta à tiracolo — toma sua corrente prata.
— Obrigado — tentei dizer, lembrando-me do dia anterior, que Bruna quis minha corrente. Meu maravilhoso dia.
O sinal tocou alto e provocou uma sensação estranha nos meus ouvidos, como se estivessem entupidos. Como todos os livros do dia estavam em minha mochila desde sexta-feira, desci direto à minha primeira aula. Gramática. Sentei na última carteira do lado direito, que dava para a janela. Apesar do vento totalmente gélido, eu precisava de ar. Bruna sentou à minha frente, calada, como nunca vi. Seria reação do acontecido de ontem? Ou, podia ser, Guilherme idiota, que ela estava sem voz igual a mim.
Tentei conversar.
— Então sua mãe obrigou você a vir à aula? — era horrível estar sem voz, tendo que arranhar minha garganta para poder sair um mísero falho de voz.
— Não, eu quis vir, mas eu acho que vou embora mais cedo para ir à clínica do meu pai. — disse ela, também se esforçando para ter um tom de voz uniforme. No domingo, dissera que além de todos os sintomas que eu tive, ela ficou com febre e repousou na cama o dia inteiro.
— Ah. — tentei parecer indiferente, e olhei em outra direção. Fitei um chaveiro novo em sua mochila, que já possuía todos os chaveiros possíveis. — É novo o chaveiro?
— Sim... o... Felipe me deu. — sua voz era mais baixa. Engoli em seco. No domingo, Bruna dissera que antes de ir brincar de verdade ou desafio conversou com Felipe, o menino da sala de Larissa. O menino que gostava “incondicionalmente” de Bruna. Era um chaveiro lilás, uma guitarra de gel. Felipe é guitarrista.
Meu corpo se enrijeceu neste momento. Eu odiava o ciúmes que chega a mim quando ela falava de outro garoto, com exceção à mim e Pedro.
— Vocês se beijaram? — perguntei, com a expressão de dor que tentara evitar trazer à tona.
— Não! — ferveu Bruna, em um tom pouco recuperado de sua voz rouca — É claro que não! Eu mesma lhe disse que nunca beijaria pela primeira vez alguém que eu mal conheço.
Não pude continuar a conversar, pois a Sra. Blumen havia chegado. Sua silhueta definida utilizava uma saia de veludo com botas sem salto, marrons. Trazia consigo a caixa de giz, cinco livros grossos e dois diários. Eu até gostava da Sra. Blumen. Aprendi a ter paixão por leitura em sua aula e a ampliar minha cultura, aumentando a pilha de livros da estante do meu quarto.
Vimos um pequeno vídeo sobre a biografia de Baudelaire e fizemos um texto sobre ele.
O tempo passara rápido, e eu percebi que já era hora do intervalo. O refeitório, uma área imensa com parte ao ar livre e parte coberta, estava cheio. As milhares de vozes que sempre ouvi todas as manhãs estavam mais eufóricas. Minha fama na escola se espalhou aos oito anos, quando minha mãe quis publicar um de meus desenhos no jornal semanal da escola. Foi então, que virei amigo de pelo menos duas pessoas de cada classe que eu mal conhecia antes. Hoje, me é familiar cada rosto que vejo na entrada, intervalo e na saída. Quando minha mãe me bajulava, falando frases melosas, nunca acreditei. “Você é o menino mais bonito que já vi em minha vida, Guilherme”. Só passei a ser um pouco modesto quando recebi a mesma frase na minha página da Internet, inúmeras vezes. E hoje, principalmente, eu sabia que a fama havia aumentado. Soava tão ridículo para os mais velhos quanto inacreditável para os mais jovens, mas não deixava de ser uma revelação.
Comprei um chá quente de limão em copo térmico e encostei na pilar quadricular de frente para a área livre. Beberiquei, quando ouvi uma voz conhecida.
— É verdade que você beijou a Bruna ontem? — era a voz de Angélica, a garotinha de cabelos louros e mirrada, da quinta série. Eu não suportava aquela garota.
— Quem te disse isso? — o sufoco de minha voz diminuíra, agora eu conseguia falar através de poucos ruídos.
— A Mariana — revelou Angélica, apontando na direção da mesa da menina. Ela sentava com Felipe e outros meninos de sua classe. Meus olhos arderam de alívio, pois Mariana estava tentando tirar Felipe de meu caminho.
— É verdade, por quê?
— Curiosidade. Foi bom? — estava óbvio que não era apenas curiosidade.
— ... foi. — menti. Não fora bom, fora maravilhoso, esplêndido, perfeito.
Meu corte no assunto fora totalmente involuntário e digno de uma pessoa anti-social. Apenas no ano anterior a timidez me consumia. Senti uma pena momentânea de Angélica, mas logo ela saiu de perto de mim.
Acabei meu chá quando o sinal tocou novamente, subi com Bruna as escadas, falamos sobre a próxima aula, que era Inglês. Esperei Bruna pegar o material em seu armário, quando perguntei, casualmente:
— Quantas pessoas já te perguntaram hoje sobre o beijo?
— Deixa eu ver... umas cem? — sua voz se misturou à uma risada calorosa e rouca.
— A mim também. — disse, pensativo, fitando seus cabelos brilhantes. — não é estranho?
Bruna parou de mexer em seus livros com as mãos nervosas e me encarou.
— Sim. — seus olhos se desviaram — mas isso não é motivo para ficarmos comentando desse assunto o dia inteiro.
— É claro.
— Vamos entrar.
Apenas a segui, ainda pensativo. Era sem possibilidades de descrever como eu amava aquela garota, desde o dia em que nos conhecemos.
Ou seja, há doze anos atrás.
Nossa aula de inglês passou rápido, tivemos que cantar uma música dos Beatles. A última aula foi livre, pois o Sr. Mendes estava doente. Ficamos fazendo outras tarefas a aula toda.
Ao meio dia e vinte minutos, o sinal tocou. Eu, que sempre levava Bruna até sua casa, queria, estranhamente, me livrar disto hoje. Desci as escadas lentamente, pois minha respiração não estava totalmente curada, meu cansaço também. Bruna vinha atrás de mim, eu teria que esperá-la guardar suas coisas e ser obrigado a conversar com ela. Foi quando, através do vidro da janela da escadaria, avistei pequenos pontos braços caindo do céu. O chão estava parcialmente coberto por camadas finas de branco.
— Bruna, está nevando! — vire-me e tirei minha melhor amiga de seus pensamentos perdidos.
Bruna imediatamente olhou para a janela e abriu um sorriso de murchar meu coração. “Vamos correndo pra lá!” tentou dizer ela, enquanto pigarreava nervosamente. Abriu seu armário num murro, largou os livros e correu na minha frente. Várias pessoas também correram, colocando seus casacos e saindo em disparada, ultrapassando as portas da escola. Meus olhos percorreram seus movimentos, então os segui, mais vagarosamente.
Enfim, neve. Gélida, lisa, leve. Neve. Traziam-me várias lembranças, as quais eu nunca queria esquecer.
Sentei na escadaria, observando a felicidade estampada nos rostos de todos aqueles alunos. Bruna estava lá, feliz, esfregando neve no rosto de Lílite, fugindo das ameaças das outras garotas de nossa classe, atirando bolas de neve por todos os lados. “Minha criança”, pensei.
Me chamaram três vezes para brincar também, só que eu estava indisposto. Observar Bruna ao longe, com a felicidade demonstrada em seu rosto, seus cabelos infestado de pontos brancos e seus olhos, claros e brilhantes, era como um paraíso.
Após meia hora, Bruna havia cansado e veio ao meu lado. Comecei então, a relembrar o inverno anterior, onde mais nos divertimos e demos valor à nossa amizade.
Ei, lembra daquele lugar, onde você me deu aquele anel que simbolizava nossa amizade? No inverno passado, que achamos lindo o lugar.
— Lembro, claro que lembro.
— Vamos até lá? Que eu me lembre, faz um ano exatamente que você me deu o anel. Eu... ainda tenho ele, claro.
Recolhemos nossas mochilas e fichários e fomos até o tal lugar. Não era muito distante, apenas indo em direção à um pequeno bosque. Caminhamos um pouco, falando de todas as lembranças trazidas à tona do inverno passado. Foi um tanto reconfortante relembrar tudo, e perceber que Bruna nunca se esquecera o que já passamos. Ela ainda estava comigo.
Ao chegar no lugar, estava completamente como lembrávamos dele. A grama agora era coberta por uma quantidade de neve razoável, pois só nevava há algumas horas. O aroma frio e sufocante não se transformara. A ponte que dava para um lago continuava intacta, bem estruturada e havia gelo em seu lado oposto. Meus cabelos voavam com o soprar do vento congelante, mas eu estava feliz.
Abracei Bruna por trás num gesto de carinho, e atravessamos a ponte, relembrando da primeira vez que fizemos isso. A neve fizera com que a madeira da ponte estivesse escorregadia, e andamos com cuidado. Sussurrei em seu ouvido as lembranças que me vinham em minha mente: minhas falas quando lhe dei o anel, meus sentimentos, o valor de toda a nossa amizade até aqui.
Quando chegamos no fim da ponte, pude ver o lago congelado com gelo acumulado em sua superfície. Os altos pinheiros há poucos metros de distância cobertos de neve eram familiares.
E isso, obviamente, dizia que teríamos mais um inverno prolongado: adeus viagem de primavera anual do colégio.
Mas, o que importava se eu estava com a pessoa com quem eu mais queria estar?
— Te amo, Bruna.
Então o sorriso afundou nossos lábios e dei-lhe um beijo na testa.




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