Capítulo 3 - O sol do inverno


— Acorde Sophie. — disse a garota, me balançando.
Levantei a cabeça e abri um dos olhos, em uma tentativa inútil de enxergar o que me cercava.
— Vamos logo, você não pode ficar aqui. — insistiu.
— O que?
— É intervalo, vão trancar a sala.
— Ai Manu, me deixa. — abaixei a cabeça novamente. — Eles deveriam permitir que os alunos durmam nos intervalos.
A garota riu.
— Por favor, o colégio não é nenhum hotel. — disse, humorada.
— Não para você.
E então eu me levantei da carteira e andei até a porta. Manuela me seguiu. Andamos pelo corredor em direção ao refeitório.
Era um salão grande e tumultuado, cheio de jovens falantes e descontraídos. A comida era péssima. Os funcionários que a serviam eram piores ainda.
— Qual será a próxima aula? — Laís perguntou, esperando uma boa resposta.
— Literatura, graças a Deus. — respondeu Manu.
— Não sei como você consegue ficar tão calma. — Manuela olhou-a e ela complementou — A professora vai passar trabalho, sabia?
— Droga! — reclamou, observando Laís segurar o riso ao ver sua reação.
As duas começaram a tagarelar, enquanto eu me perdia em pensamentos desagradáveis. As vozes do refeitório passaram a ser apenas chiados em minha mente. E antes que eu pudesse me fixar em minhas lembranças, o sinal tocou. O intervalo havia passado rápido demais.
Laís e Manuela se levantaram e eu fiz o mesmo logo em seguida. Esbarrei-me com Eduardo, um garoto popular que seduzia quase todas as garotas do colégio. Os corredores costumavam ficar lotados no fim dos intervalos, era difícil passar sem se chocar com alguém. Continuei andando como se nada tivesse acontecido, enquanto o garoto me xingava por ter derramado seu refrigerante. Finalmente chegamos na sala, fui a primeira das três a entrar. Sentei em minha carteira e coloquei um dos cotovelos na mesa para apoiar a cabeça. A Sra. Delanni entrou com uma enorme papelada — que logo foi colocada em cima de sua mesa por um de seus alunos bajuladores — e começou a explicar o trabalho.
— Vinte páginas de desenvolvimento sobre o romantismo na europa? — gritou uma garota com uma voz irritante, que pelo que me lembrava, chamava-se Deborah. — Você é louca. Não dá para fazer um trabalho desses em uma semana!
— Se quiser, posso deixar que você e seu parceiro façam uma monografia, Srta. Stojak. — ameaçou a professora. — Aliás, ainda tenho que dividir as duplas.
Sra. Delanni sentou em sua cadeira e abriu uma pasta vermelha de plástico. Retirou uma lista com o nome de todos os alunos da turma e começou a formar duplas, pronunciando em voz alta as que já havia formulado. Manuela se levantou e sentou na carteira vazia ao meu lado. Olhou para mim e começou a tagarelar novamente, enquanto eu apenas concordava com a cabeça.
“Sophie e Lise”, ouvi — ou pensei ter ouvido — a professora dizer. Olhei para Manuela, tentando parecer indiferente. Eu não conhecia nenhuma Lise. Nunca havia escutado aquele nome.
— Quem? — perguntei, tentando novamente parecer indiferente.
Manuela olhou por cima do meu ombro. Virei meu rosto e vi a ruiva que me provocara mais cedo, estava sorrindo. E para piorar, estava sorrindo para mim. Seus olhos castanhos estavam fixados nos meus. “O que há de errado com aquela garota?”, perguntei à mim mesma. Levantei e me retirei da sala.
Os corredores, diferente de antes, estavam vazios. Foi fácil chegar ao banheiro sem ser incomodada. Olhei-me no espelho e ajeitei meus cabelos. Eram grandes e castanhos. Lisos, com corte em formato de "V" e uma franja presa para trás com presilha verde.
Não gostava do jeito que aquela garota olhava para mim. Era estranho, como se ela me perseguisse. Odiava a forma que se parecia com Bianca. Cada vez que olhava para seus cabelos ruivos, sentia uma demasiada vontade de chorar. E como se fosse mais forte que eu, as lágrimas desceram instantaneamente. Tentei me concentrar em outras coisas, mas não era o bastante para conter o choro. Só parou quando lembrei que tinha que voltar para a sala. Abri meu pequeno estojo de maquiagens e lavei o rosto. O lápis em volta dos meus olhos verdes estava borrado, eu não podia ir para a aula daquele jeito.
Depois de alguns minutos, estava tudo feito novamente. Voltei para a aula e sentei. Espreitei a garota de cabelos ruivos, desviando meu olhar quando percebi que nossos olhos se encontrariam. Eu teria que fazer o trabalho com ela, era só isso. Não era nenhum monstro de sete cabeças. Depois eu me livraria dela e fim.


Quando a aula terminou, juntei minhas coisas e coloquei dentro da bolsa branca de bolinhas vermelhas. Andei pelos corredores novamente lotados, Eduardo me encarou quando passei por ele, eu o olhei com um olhar robusto e segui meu caminho até o meu refúgio. Algumas garotas irritantes olharam para mim e começaram a cochichar com suas amigas. Eu não entendia. Ninguém, com exceção de Manuela, sabia da minha amizade secreta com Bianca. Tentei evitar aquilo também. Nunca havia entendido o motivo que Bianca tinha para querer esconder nossa amizade. “Talvez ela não quisesse ser vista com uma bissexual”, pensei enquanto virava à esquerda. E lá estava ele, coberto de neve, causando uma sensação de desconforto horrível, mas superável. Joguei a neve que estava em cima do banco no chão e sentei. Estava frio, mesmo vestida com várias roupas, uma por cima da outra.
Fechei os olhos e tentei descansar. Novamente, em vão.
Alguém sentou ao meu lado. Abri meus olhos e vi minha nova parceira de trabalho olhando para mim.
— Quando podemos começar? — perguntou, rindo.
Encarei-a indignada.
— Eu posso fazê-lo sem sua ajuda.
— De jeito nenhum. — retrucou a garota — Não quero levar créditos por algo que não fiz.
— Olha, eu não te conheço direito. Não faz sentido fazermos um trabalho juntas.
A garota de cabelos ruivos sorriu maliciosamente. “Que menina doida”, pensei.
— Temos uma semana para fazer esse trabalho. Dá para nos conhecermos melhor nesse tempo. — sugeriu.
Eu permaneci calada. Então o seu olhar mudou. Não era mais aquela expressão maliciosa, era curiosa.
— O que aconteceu?
— Nada. — respondi, me perguntando sobre o que ela estava falando.
— Claro que aconteceu algo. — encarou-me — Você é uma das mais inteligentes da turma. Acha mesmo que ninguém percebeu que você faltou duas semanas de aula?
— E o que você tem a ver com isso? — fitei-a — Minha vida não deveria ser de seu interesse.
— Todos sabem que você e Bianca eram amigas, as pessoas daqui não são lerdas a ponto de não notarem.
E então as lágrimas rolaram novamente pelo meu rosto. Ela tinha que dizer logo aquele nome que tanto me feria?
— Desculpe. — disse, colocando a mão sobre a minha — Eu não tive a intenção de...
— Eu... — sussurrei, interrompendo-a — Eu a matei.
Lise me olhou.
— Você não a matou, Sophie. Ela tinha arritmia cardíaca, qualquer pessoa com uma doença dessas pode... — deu uma pequena pausa e então prosseguiu — falecer após quase ser atropelada por um caminhão.
— Mas a culpa é minha.
— Por que?
— Porque sim.
A ruiva passou sua luva preta sobre minhas bochechas para enxugar as lágrimas e se levantou, estendendo a mão para mim.
— A Sra. Delanni não vai esperar até que você pare de chorar para receber o trabalho.
Segurei sua mão e com um pouco de esforço me levantei.
— Na sua ou na minha? — perguntou.
— Olha, talvez seja melhor...
— Na sua ou na minha? — repetiu.
— Na sua.
— Então, amanhã depois da aula, na minha casa. — disse, ansiosa — Acho melhor você ir, daqui a pouco vai ficar mais frio.




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