Capítulo 3 - Vã Esperança

Minha chegada em casa após uma longa hora de recordações foi mais atenciosa que o normal. Minha mãe estava almoçando em frente à TV, e Mike, meu labrador amarelo de porte grande mordia um osso aos pés dela. As perguntas sobre minha saúde que saíram da boca de minha mãe me deixaram constrangido. Eu ainda estava em transe por ter ido a um lugar onde estive somente no ano passado, nunca mais.
Fiz carinho na cabeça de Mike, que me lambeu, e subi as escadas. Deixei minha mochila em meu quarto e fui ao banheiro. Olhei para o espelho e tive uma surpresa: meu rosto se encontrava com um sorriso enorme, quase que ridículo, em sua superfície. Meus olhos e nariz desincharam, meus lábios agora só ficavam abertos para falar e sorrir. Testei minha fala, agora era só uma rouquidão grave, pelo menos eu conseguia falar. Era horrível não poder conversar direito.
Tirei todas as peças de roupa de meu corpo, até ficar completamente congelado sem algum pedaço de pano. Tomei uma ducha quente, que relaxou meus músculos, e pela primeira vez desde o inverno passado, me deu vontade de ficar em casa, repousando, fazendo absolutamente nada.
Decidi que iria adiantar minhas tarefas escolares, e fiz para uma semana. Isso ocupou duas horas de minha tarde, então quis ligar o notebook e ficar passando o tempo. Liguei meu aparelho de som e deixei o CD de Daft Punk em um volume agradável. Sentei com as costas na cabeceira da cama, o notebook no colo, sobre uma manta grossa. Vasculhei minha página da Internet e meu e-mail cantando as músicas que sabia de cor. Foi quando, ao ver minha página, vi uma mensagem em particular de Mariana.

“Guilherme. Eu sei que faz pouco tempo que nos conhecemos.
Quanto tempo, na verdade? Quase um ano.
Isso não dá motivos para excluir a possibilidade de nossa amizade ser tão boa a ponto de parecer que somos amigos desde sempre.
E eu já te disse que você é lindo?
Aliás, todas as garotas devem te dizer isso, .
Então, quem sou eu, uma garota gorda, problemática, míope, para achar que eu teria alguma chance?”

Meus olhos arderam com a reação de não piscar por muito tempo. Fechei os olhos.
Nunca alguém se declarara assim. Estava discreto, mas estava óbvio. Um calafrio violento percorreu meu corpo como um raio.
Mas a autora não havia especificado. Não havia declarado detalhes, mas eu considerei o que vi.
Uma coisa que odeio são pessoas que usam a Internet para demonstrar suas emoções, e não declaram pessoalmente, quando se é possível
Peguei o telefone e disquei o número, o número de Mariana.
No terceiro toque, alguém atendeu, mas não disse nada. Insisti em dizer “Alô”, mas nem um ruído saía do aparelho. Depois, a chamada ficou ocupada. Repeti o número apertando um botão, e a mesma seqüência repetira. “Tentarei mais tarde”, pensei.
Porém, agora que eu não podia ficar sem fazer algo a respeito. Eu precisava falar com Mariana. Seja mentira ou não.
Meus pés agora balançavam do outro lado da cama, inquietos, tensos. Fiquei batendo meus dedos inultimente nas teclas, sem apertá-las. Li e reli inúmeras vezes o mesmo parágrafo. Visitei a página dela, olhei suas fotos.
Mariana, apesar de toda sua simpatia e generosidade, era a garota de uma aparência não das melhores da escola. Seus óculos de forte grau e hastes vermelhas chamavam a atenção para seus olhos fundos e esverdeados. Seu peso era, digamos, um pouco elevado, mas ela se esforçava para esconder. Sua estatura era mediana, porém, mesmo assim, era ainda considerada a mais feia de minha classe. E eu nunca havia dado a ela uma atenção a mais.
Mariana porém, era uma pessoa boa e de personalidade forte. Seus pais faleceram quando ela tinha dois anos de idade, ela então foi criada com os tios maternos. Nunca soube cuidar de animais de estimação, apenas de peixes. Era nervosa compulsiva e viciada em doces. Bruna também era necessitada de muito açúcar, mas ela conseguia controlar seu peso graças às atividades físicas, que incluíam dança Street e voltas pelo bairro com bicicleta, sem contar as aulas cansativas de teatro. Mariana se dizia preguiçosa, mas compensava com suas notas escolares. Sempre estudara muito, trocando lazeres como Internet por horas na frente de livros. Aprendera a levar a sério assuntos escolares, depois de repetir a quarta série.
Bruna, outra vez, ganhava: revisava a matéria recente durante meia hora por dia; tendo notas iguais às minhas, que reviso por uma hora e meia.
Mas eu não sabia se aquelas palavras digitadas eram verídicas; eu teria que saber.
Tirei o notebook de meu colo, fui para a cozinha encher um copo de água. Tirei da porta da geladeira a água refrescante, e molhei minha garganta ainda áspera. Meu cérebro estava funcionando em outro padrão, demasiado pensativo.
Subi as escadas novamente, desta vez Mike me seguiu. Peguei o telefone novamente, liguei para Mariana. O telefone chamou quatro vezes. Na quinta, ouvi um silêncio momentâneo, depois, uma voz feminina parecia dizer no fundo “Fala alguma coisa, pra que fugir?”. Depois, era seguido de uma risada discreta. Meus ombros se encolheram, então desliguei e desisti. Ah, fora a gota d’água. Se ela não queria conversar, eu não insistiria. Resolvi conversar no dia seguinte, pessoalmente.
Meus pés e minhas mãos estavam inquietos, desde o momento que li a mensagem de Mariana. Olhei por toda sua página. Ela tinha poucas fotos de si mesma, no entanto sabia tirar fotos. Valorizava seu melhor ângulo - ou, dizendo sinceramente, menos feio – e suas demais fotos eram em um álbum com seus amigos. Eu estava naquele álbum, uma foto minha com ela. Ela editara a foto riscando seu rosto, dizendo que saíra horrível. Mas eu é que estava horrível.
Ainda sim, pensei comigo mesmo: Mariana está me evitando. Foi ela mesma que deixou esta mensagem para mim, não alguma amiga invejosa querendo arruiná-la.
Agora, eu estava inquieto demais para continuar em casa.
Vesti uma calça jeans, uma touca de lã preta e botas de couro, peguei meu celular e saí para o relento. Minha mãe estava descansando, graças a Deus. Não queria explicar porque sairia no meio de uma tempestade de neve.
E, no sentido literário, era uma tempestade. A neve que caía sem parar congelava a ponta de meu nariz e os dedos das minhas mãos, mas não desviei de meu destino. Segui até o prédio de Bruna, quatro quarteirões de distância de minha casa. Mais pareciam quilômetros, então tentei não me preocupar novamente com o frio. Refleti novamente sobre Mariana, e que contaria tudo à Bruna.
Finalmente, meus pés tocaram o calçamento da portaria do prédio. Interfonei para seu apartamento, e sua voz ainda não tinha voltado. Ela pedira para a empregada Catarina atender.
Agradeci ao porteiro, como era de costume, passei pela gentil moça da recepção e entrei no elevador. Eu estava a caminho de uma simples conversa com minha melhor amiga, aparentemente.
Mas, veridicamente, estava indo fazer ciúmes na pessoa em que mais amo e quero o bem neste mundo.
Ciúmes, não corretamente a palavra certa a se dizer, mas eu precisava ver Bruna, de um jeito ou de outro.
Apertei a campainha do apartamento de três andares de Bruna, ansioso.
— Olá Guilherme!
Oi — disse, para a bonita e uniformizada de azul-bebê empregada.
— Pode entrar, Bruna está no quarto dela.
Assenti, e subi as duas levas de escadas sem pressa. Gostava de admirar a casa de Bruna, que é enorme. No primeiro andar, uma área de cores claras formava uma sala de espera, toda decorada criativamente. Um piano de cauda preto situava-se do canto direito, enquanto do outro lado uma sala de tema madeira alternava o tom de escuro para claro construía harmonicamente a sala de jantar, com milhares de peças de vidro e cristal. A cozinha cara e personalizada usava também tema madeira, tons de castanho e um branco creme. O lavabo gracioso e moderno, decorado para o inverno.
No segundo andar, as cores passavam para um tom mais escuro. A área mais pessoal era uma sala de estar, com um moderno e caro conjunto de som instalado à sua volta. Outra sala média formava uma pequena academia, onde o pai de Bruna passava os fins de semana, queimando calorias. Outro lavabo, com cores acinzentadas e pequenas estatuetas, réplicas escuras de obras de arte. Um escritório, também, cores escuras, compunha-se de uma cadeira de executivo, uma enorme janela de vidro — assim, como em todos os cômodos da casa —, um computador de alta qualidade e uma estante com milhares de livros. Em ambos os andares, varandas com vistas de extrema beleza, para os pinheiros e a piscina sem cobertura do prédio.
Ao entrar no quarto de Bruna, deparei-me com a pequena gata, Kate. Seu pêlo branco com manchas castanhas se esfregou em minha calça e um miado fino saiu de sua garganta.
Particularmente, era o melhor cômodo do "castelo" dos Giordano Fehera. Ocupava dois andares, composto pela cor roxa. Era tão roxo quanto branco. Um equilíbrio orgulhoso. A decoração nas paredes e na enorme estante localizada no primeiro andar era por bichinhos de pelúcia com a boca cerrada em riscos pretos, dados e pequenas silhuetas femininas, sempre incompletas, cortadas. Ela própria escolhera no início do ano. Sob o chão do segundo andar, dois degraus baixos davam acesso à uma escrivaninha branca e uma parede de vidro, assim como a parede lateral. Na entrada, um sofá macio com almofadas lilás situava-se na diagonal, junto a um tapete peludo e uma TV de plasma. Subi as escadas, e era lá que eu mais admirava. Uma cama de casal espaçosa, outra TV de plasma na parede. Uma cerca alternante de roxo à branco separava o segundo andar do primeiro. Poderia levar uma queda perigosa caso caísse dali.
Os lustres, todos de vidro, a luz branca, e riscos violeta os contornavam.
A parede redonda cobria o banheiro, e em seu canto esquerdo, a porta para o closet. Ao lado da cama de Bruna, um charmoso criado-mudo, uma escrivaninha com um computador espelhado e a porta de vidro para a varanda.
Bruna estava lá, deitada em sua enorme cama macia com uma manta grossa sobre seu corpo. O notebook ligado, que fazia uma luz branca em seu rosto, fora deixado de lado, e ela estava distraindo-se com o programa de televisão. Seu rosto ainda não desinchara, nem sua expressão de resfriado mudou. Mas continuava linda.
— Olá — eu disse, exibindo minha voz semi curada.
Oi — tentou dizer ela, com um mínimo ruído e sua boca abrindo e fechando.
Sentei ao seu lado, acariciando seus cabelos frios, olhando em seus olhos.
— Você não parece melhor.
— Não estou — sua voz parecia totalmente reduzida desde a manhã. Tentei reanimá-la, contando de como minha mãe me interrogou sobre a saúde, mas sua expressão de resfriado ainda era tristonha.
Larguei meus tênis e enfiei meu corpo para debaixo do cobertor, colocando o braço envolta de seu corpo. Beijei sua testa como no início daquela tarde, então ela aconchegou a cabeça em meu ombro. Percebi que ela, milagrosamente, não queria conversar. Sua expressão, comigo, era mudada, totalmente lembrando o conforto. Bajulei-a, dizendo coisas em seu ouvido, porém não necessariamente românticas. Reconfortei-a, dizendo que sua voz se recuperaria logo, que poderíamos voltar a conversar normalmente, que a dor que arranhava sua garganta iria passar, e relembrando todos os momentos do inverno passado, divertindo-a, finalmente.
Eu, então, entendi porque aquela garota me conquistara. Ela era a única pessoa que suportava meus dizeres mais idiotas, nos meus momentos de ataques de claustrofobia aguda, de querer desenhar tudo que encontro, de xingar até a minha própria mãe. Bruna adorava tudo isto, e nem Mônica, minha mãe-amiga, nem Pedro, nem o próprio Mike me aturava.
A TV já não mais importava, era uma luz qualquer. Eu acariciava seus cabelos, meus dedos enroscando-se distraidamente em seus fios leves.
Então, no triste pesar do silêncio momentâneo, o assunto terminara. Fitei a TV sem assisti-la, recordando-me do objetivo que propus quando vinha para a casa de Bruna. Depois, peguei meu celular esquecido e comecei a mexer em qualquer botão.
Achei que era a hora de quebrar o silêncio torturador.
Hmmm — hesitei — hoje eu estava mexendo no computador, e a Mariana me mandou uma mensagem...
— Que mensagem? — pigarreou Bruna.
— Ela disse... que me achava lindo — disfarcei meu nervosismo com uma risada baixa – e, mais ou menos assim: “Todas as garotas devem ter dito isso, e quem sou eu, uma menina gorda, míope e problemática pra achar que tenho alguma chance?”
Bruna me olhava com intensidade. O azul de seus olhos grandes brilhava para mim, somente para mim. Mas o que... eu estava fazendo?
— Estou sem palavras.
— Imagina eu.
O silêncio que renasceu fez meus pés começarem a se agitarem novamente, inquietos, porém entorpecidos.
Percebi então que Bruna estava distraída assistindo a um programa fútil, sobre um de seus ídolos musicais.
— Sabe Gui, por mais que ela seja feia, digamos sem receio, você deveria investir nela.
Meu corpo se enrijeceu; eu não sabia se tinha escutado corretamente.
— Como assim? — não parecia uma pergunta, minha voz estava comprimida em uma rouquidão pior do que a normal.
— Sabe, é bom quando aparece alguém que gosta da gente. A Mariana é favorável, e as aparências não valem nada. Mas também se você achar ela feia mesmo – sua voz foi interrompida por um leve riso - podia lhe dar conselhos, já que ela se desvaloriza tanto.
— Não quero nada com ela, Bruna.
— Você é quem sabe. É claro que, você é lindo — o sorriso voltado para um lado, colocando em evidência uma covinha, estampou-se em seu rosto, que virou para me encarar — e que, vão ter muitas garotas querendo ficar com você. — a indiferença de sua voz era insuportável.
— Eu não quero várias garotas.
— Eu quis dizer que várias garotas, dentre elas, algumas mais bonitas, outras mais legais. Mas você quem sabe. — sua voz se cansou, agora implorando por um copo de água. Bruna pediu o copo que estava no criado-mudo, o qual quase larguei em sua mão.
Agora, o silêncio não era causado por alguma coisa fútil ou momentânea.
Eu não queria dizer nada, apenas correr dali, correr, que seja me atirar na neve mortalmente fria e morrer ali.
Minha parte egoísta não deixava que eu tivesse compaixão e retribuísse a gratidão de se preocupar comigo.
Minha parte egoísta e todo meu resto.
Coloquei um toque no meu celular enquanto Bruna pensava, e fingi ser uma ligação. Desliguei a música e coloquei o telefone na orelha.
—Fala mãe — minha voz estava em ponto de me entregar, mas pigarreei forte e continuei com a expressão sóbria.
Bruna fitou-me, curiosa. Ignorei, continuei a fingir, e tentei aparentar desprezo, enquanto formulava minha desculpa para fugir daquele lugar irritante.
— Tudo bem, estou indo — apertei um botão qualquer, tomando o cuidado para que Bruna não visse a tela do meu celular.
— O que foi?
— Ela disse que Mike está estranho, parou de brincar e não quer fazer nada desde que eu vim para cá – menti com desprezo, tendo que colocar a culpa no meu eterno companheiro.
— Droga, então tchau.
Tchau — dei um beijo em seu rosto, ainda entorpecido.
Desci depressa as escadas, batendo forte a porta ao sair do quarto. Encontrei Catarina tirando o pó da estante na sala de estar, pedi que abrisse a porta para mim. Ela não perguntou o porquê eu tinha que sair, e abriu. Corri desesperadamente pelo elevador, porém o vazio em mim se manifestou durante a descida. Os vinte e três andares seriam cansativos para uma escada, mas eu teria conseguido.
Diminuí o passo quando passei pela recepção e a portaria, mas voltei ao ritmo quando saí para a neve. Corri apressado por entre as poucas árvores cobertas por uma camada branca, pelas casas grandes e harmoniosas, com seus jardins de inverno, pelas crianças brincando umas com as outras.
Cheguei aos pés da escada de entrada da minha casa. Uma lágrima ousou tentar sair de meu olho direito. Não, ainda eu não podia me afogar na minha sensibilidade exagerada.
Subi as escadas, ofegante. Entrei na sala, minha mãe não estava. Vi que ela cuidava do jardim de inverno nos fundos da casa.
Subi as outras escadas, procurando por meu único companheiro. Ao entrar no meu quarto, tranquei a porta.
Meu Mike estava deitado, esperando por mim. Sentei ao lado dele, quando, finalmente, uma lágrima escapou involuntariamente de meu olho.




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