Capítulo 4 - Inesperado


Com a lágrima que escorria em meu rosto, Mike virou a cabeça para mim e me lambeu. Comecei a ficar com a agonia de quem não consegue expressar-se, então liberei mais lágrimas. Pensei comigo mesmo: “Sua mulherzinha, imbecil, idiota, fraco.” Como pude ser tão retardado mentalmente a esse ponto?
Bruna não tinha culpa, como sempre. Sempre fui o otário e burro da história, porque sempre fui o garoto que amava incondicionalmente uma garota, e que não se declarava por medo dela não corresponder.
Apenas aí eu tinha razão: Bruna não me amava, como eu a amava.
Impossível alguém amar uma pessoa tão inútil como eu.
Minha cabeça se apoiou na parede, e meus braços caíram no chão. Meus olhos, úmidos e sem vida, fitaram o teto, pensativos. Soquei três vezes o chão, fazendo meus dedos tremerem de dor.
Mike levantou-se, sentou na minha frente, oferecendo a pata esquerda. Peguei-a como um gesto de consolo, puxei-o para meu colo e o abracei. Nessas horas, eu podia contar com Pedro, André, Victor, todos os garotos que eu tinha um vínculo de parceria forte, mas Mike era pra sempre meu grande bobalhão e amigo.
Sua enorme língua ensopada cobriu meu rosto, obrigando-me a afastar seu corpo do meu. Comecei a conversar com ele, como se ele pudesse me ouvir. Mas era um bom ouvinte. Passei alguns minutos conversando com ele, entendendo que, se pudesse falar, Mike diria que eu estava sendo hipócrita e ridiculamente dramático. Eu sabia que Bruna não gostava de mim, e era para eu me contentar com isto.
Abracei seu corpo novamente, tendo o cuidado para não tomar um banho de saliva grudenta.

Uma semana passara, e meu círculo de emoções fortes se dissipara. A neve continuava a cair, parecia que nosso bairro iria ser soterrado. Mas acontecia em todos os invernos, então relaxei. Na quarta e na quinta-feira, as aulas foram suspendidas por causa do excesso de neve. Nesses dias, reunimos Pedro, Lílite, André, Victor, Bruna, Fabiana e Gustavo, o irmão mais velho de Bruna, aqui em casa. Apesar de não caber todos, nos amontoamos e vimos quatro filmes. Minha mãe trabalhou exaustivamente na cozinha, fazendo seus bolos e tortas famosos. A delegacia também só deixou poucos guardas para emergências, então minha mãe estava dispensada.
Terça-feira. Aulas de química, geografia e história não eram convidativas numa manhã de neve brusca caindo aos montes em sua cabeça, mas eu fui, por não querer dormir naquela manhã.
Agora, para mim, era um desafio olhar Mariana. Lembro que no dia seguinte do ocorrido, conversei com ela. Sua expressão corada em seu rosto redondo de compasso era clara em minha memória. Mas ela teve coragem e me explicou tudo. Realmente, gostava de mim. Tentei ignorar esse fato, falando com ela como se nada tivesse acontecido. E não deu muito certo, obviamente. Porém, ela sentou ao meu lado em todas as aulas, o que não acontecia antes.
Eu não queria iludir sua mente, nem dar-lhe esperanças.
Bruna não faria eu mudar minha opinião. Nunca. Prometi a mim mesmo.
As aulas passaram mais rápido do que eu sempre quis, então fui com Pedro, Lílite e Bruna tomar chá quente na cafeteria da esquina da casa de Pedro. Por mim, tomaria café-da-manhã todos os dias lá, mas o preço não agradava meus bolsos. A qualidade de lá sim.
— Estou sem dinheiro, gente. Alguém paga um chá pra mim? – disse Bruna, revelando um milagre: impossível a filha de ouro que ganhava oitocentos reais por mês de mesada não ter dinheiro. Sua voz de mel voltara ao normal, assim como sua saúde.
— Um chá e algum doce – ofereci.
— Não precisa – ela estava sendo gentil, como sempre. Nunca rejeitava um doce.
— Fique quieta, que doce você vai querer?
— O de sempre, óbvio.
Chegamos à cafeteria, pedimos a mesa no melhor lugar. Claro, se recebi minha mesada no dia anterior, era para gastar. Coloquei meu casaco grosso na cadeira, enquanto olhava a nova decoração de inverno do ambiente. Pedi um chá de hortelã e um waffle de baunilha com calda quente. Bruna pediu seu doce predileto daquele estabelecimento: uma generosa massa crocante trufada, também com calda quente, e um chá de maçã.
— Não sei se vou à escola amanhã, e vocês? - disse Lílite, balançando seus cachos ruivos para remover a neve.
— Eu vou. Você sabe que perder matéria não é muito atrativo – reclamei, assumindo meu lado nerd.
— Se bem que no inverno, a vontade de ir pra escola cai depressivamente... – refletiu minha musa, apoiando a cabeça em uma das mãos.
— Gente – eu disse – em plena quarta-feira. Deixa pra faltar em sexta ou segunda, para emendar o fim de semana.
— É, tem razão – concluiu Pedro, assim que nossos pratos chegaram.
Beberiquei meu chá, que ajudou a me esquentar. Enfim, o conforto era totalmente bem-vindo após aulas vulgares e sem reais importâncias. Ao meu redor, nenhum adolescente, ou praticamente, criança; poucos adultos de uns vinte a trinta anos almoçavam lanches finos e caros. Decidimos que não iríamos almoçar na cafeteria, pois iria custar demais, então apenas tomaríamos um chá.
A conversa fluiu como em um dia comum. Meus dedos dos pés e das mãos se esquentaram, temendo a volta para a nevasca nebulosa. A presença de Bruna ali era como a de uma simples amiga – a melhor amiga – porém, nada mais que isso.
A música agitada do meu celular começou, então atendi: era minha mãe.
— Oi, mãe.
— Filho, vem pra cá agora. – sua voz estava calma, mas urgente.
— Por quê?
— Venha logo, é urgente, pelo amor de Deus, Guilherme. – o desespero agora estava claro.
— Estou indo.
Desliguei o aparelho, contei resumidamente o que ela dissera e saí, deixando meu dinheiro sem trocado com eles. Corri porta a fora, colocando meu casaco apressadamente. Não parei de caminhar rápido até minha casa, imaginando o que tinha acontecido. Minha mente logo se fixou em Mike, mas nada muito grave. Porém, a urgência da voz de minha mãe me deixou angustiado.
Ao virar na esquina de minha rua, notei um carro branco do veterinário de Mike. Minhas pernas tremeram. Voltei a correr o mais rápido que pude, querendo logo falar com minha mãe. E lá estava ela, aflita e tremendo, olhando para a maca que descia as longas escadas do exterior de minha casa. Nela, meu companheiro Mike, desacordado.
— O que aconteceu? – perguntei aflito, quase gritando de desespero.
— Encontrei o Mike desmaiado no seu quarto – sussurrou ela, notando meu desespero, e como, uma mãe experiente, saberia pelo o que eu teria que passar. – Meu filho pode ir com vocês? – disse ela para um dos homens.
— É claro – um homem com um casaco pesado branco disse, pesaroso.
— Vá com eles, Gui. Vou avisar o Sr. Fales que irei ao veterinário por emergência, logo em seguida vou até lá.
Não consegui emitir som algum. O entorpecimento de minha voz chegou ao nível máximo. Desviei meu corpo de minha mãe e entrei no carro pela parte de trás, onde estava um médico checando a pulsação de meu Mike. Olhei sua grande cabeça, olhei seu corpo. Ele respirava, graças a Deus, porém ainda estava desacordado. Sentei ao seu lado, chamando seu nome. “Tentativas inúteis” repetia para mim mesmo. O médico dissera que ele não acordou com aromas fortes nem nada.
O veterinário parecia ficar a uma eternidade de minha casa.
Era só um susto, só podia ser um pequeno susto. Mike comeu algo que não devia e simplesmente desmaiou, ou algum odor forte demais tenha feito ele ficar assim.
O carro parou em frente de um estabelecimento de fachada branca, e os três médicos saíram do veículo, segurando a maca de meu amigo. Corri, seguindo-os. Segurei a porta para entrarem, e o ambiente me deixou nauseado e mais nervoso do que já me encontrava. Fomos para a entrada de emergência, deixando os donos dos mais diversos cães existentes irritados. Subi a escada aos saltos, sabendo que, apesar de um simples desmaio, do outro lado do aparelho médico podia estar avisando que meu Mike corria perigo vital.
Seu corpo, em horizontal sobre a maca, começara a ter tremores assustadores, que alertaram mais os médicos de urgência.
Levaram-no para uma sala, e disseram que eu não poderia entrar. Insisti, mas logo entendi que não poderia mesmo. Fiquei ao lado de fora, tentando, de alguma forma, me acalmar. Mas era impossível. Havia café e água na sala de espera, porém ao fitar aquilo, quase meu chá e meu doce recém digeridos vieram à tona.
Mônica caminhou depressa parando próxima de mim.
— Como ele está? - seu rosto expressava dor e abatimento.
— Não sei, entraram agora.
Funguei profundamente, agora me atirando contra o corpo jovem e delicado de minha mãe. Sua estatura é menor que a minha, mas seu abraço era um tanto acolhedor e reconfortante. Ela sentou no sofá macio e bege, obrigando-me a sentar junto a ela. Resmunguei como uma criança manhosa e mimada, soltando as lágrimas que queriam sair desde o momento que vi o veículo na porta de minha casa.
— Guilherme, não chore. Não foi nada de mais, ele vai ficar bem.
Não respondi. Ninguém conhecia Mônica como seu próprio filho, e ela não tinha segurança no timbre de sua voz.
Não podia ocorrer nada de grave com meu cão, meu eterno companheiro e amigo, por favor.
— O que é isso, meu filho? Foi apenas um desmaio, ele está sendo atendido. Você também, só tem tamanho, mas chora igual uma criança.
Eu dei um riso de leve. Enxuguei as lágrimas repousando minha cabeça nas mãos, me livrando do abraço de minha mãe.
Mas voltei ao meu estado pessimista. Liberei mais algumas lágrimas, funguei novamente.
Um homem de branco saiu da sala e disse que havia feito exames. Disse que em um deles, foi revelado que Mike bateu a cabeça fortemente, e que teria que passar algum tempo em repouso, no hospital.
— Mas já sabe a causa, doutor? - A voz de Mônica estava rouca.
— Infelizmente, não - o pesar em sua voz era claro - mas estamos fazendo o possível para descobrir. Hmmm, recomendo que vá para casa, só será possível vê-lo daqui algumas horas - alertou o médico, olhando para seu relógio de pulso - e antes que caia uma tempestade de neve.
— Hmmm, tem razão. Vamos, Guilherme?
— Que horas exatamente poderei vê-lo? - perguntei ao médico, com os olhos ardendo.
— Não sei ao exato, mas creio que só à noite.
— Vamos voltar à noite, então - disse minha mãe, levantando-se, engolindo uma lágrima, também. Apanhou sua bolsa, pegou em minha mão e saiu, agradecendo o médico e a recepcionista loira.
Saímos para o frio indescritível, apressando-nos a entrar no Corolla de dois lugares, prata. Não era próprio para a ocasião, mas a pressa obrigara minha mãe sair com aquele veículo. Liguei o aquecedor e disquei o número de Bruna.




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